quarta-feira, 31 de outubro de 2007

FINAL FELIZ

- Augusto, tire-me isso da frente, já não aguento ver mamas.
- Mas, Bráulio, foi você que me pediu o jornal.
- Eu sei, só que cheguei a essa página horrível e impressionei-me.
- Está muito sensível, hoje, Bráulio.
- Estou. Fico assim quando adoeço.
- Mas... Mas passa-se alguma coisa?
- Passa, passa. Há dias vi a Clara num jardim.
- Ah, percebo. Veio-lhe a nostalgia.
- Você fala disso como se me tivesse vindo o período.
- Ehehe... Desculpe. Na verdade, é mais ou menos a mesma coisa.
- Olhe, já não lhe disse para me tirar isto da frente?!
- Ah, perdão. Pronto, já está. Já não tem mamas à frente dos olhos.
- Se eu as pudesse ao menos tirar da cabeça. As da Clara, claro.
- Da Clara, claro. Que engraçado.
- Engraçado o quê? Não vejo qual é a graça!
- A repet... Deixe lá. Quer um chazinho?
- Preferia uma Seven Up, se não se importa.
- Por acaso não sei se a Camélia se lembrou de comprar, mas eu pergunto.
- Não, não a chame. Se ela vier aí eu vou ver as mamas dela e depois é um problema.
- Então, Bráulio... Não pode continuar a recusar confrontar-se com mamas, elas andam por toda a parte. E, mais a mais, de certeza que o que o prendia à Clara não eram só as mamas.
- O que é que você sabe disso?!
- Nada, nada. Mas acredito que se ela o deixou assim nesse estado não foi só pelas mamas que tinha.
- Totalmente! Eu nela não via absolutamente mais nada.
- Pronto, pronto, eu respeito isso. Cada um sente as coisas à sua maneira.
- Nunca na vida se me apresentou um par de mamas como aquele, era uma coisa descomunal, vívida, espectacular! Até me dói só de pensar.
- Talvez seja o exagero próprio de quem lhes sente a falta. Se calhar quando as tinha nas mãos não lhes dava o devido valor.
- Lá está você a falar do que não sabe...
- Não será bem assim, Bráulio. Afinal, eu fui assistente de mamógrafo durante seis anos, alguma coisa perceberei do assunto.
- Isso não tem nada a ver. Mamas como aquelas não podem ser comparadas com quaisquer outras. De nada lhe vale a experiência científica, nem para me convencer nem para fazer, sequer, uma ideia aproximada daquilo de que estou a falar.
- Pronto, tudo bem, não insisto. E agora? O que é que vai fazer? Ficar aí a martirizar-se? Acha que é uma atitude inteligente?
- Ei! Ei! Que modos são esses?! Já chegámos à Madeira?! Você não se esqueça de que ainda sou eu quem lhe paga o salário!
- Que salário, Bráulio?! Você está realmente a dar em doido! Sabe uma coisa: o melhor é eu tentar encontrar a Clara e trazê-la cá para ver se ainda há hipótese de vocês se entenderem.
- Isso, faça isso. Mas olhe: você já deixou de ser meu empregado?
- Há anos, Bráulio!
- Não repita o meu nome tantas vezes. Irrita-me. E agora vá. Vá buscar a Clara.
- Claaaaaaaara!
- Olha, passou-se... Ó Augusto, você acha que ela vai vir assim?
- Claro, ela sempre esteve aqui.
- Como assim?
- Espere. Aí está ela. Clara, explica aqui ao Bráulio porque é que o deixaste.
- Porque gosto muito mais das chupadelas do Augusto. Ele é mais delicado, não sei, e ao mesmo tempo mais animal. É difícil de explicar, acho que só visto. Augusto, põe aqui a boquinha.
- Anda cá.
- Uuui! Aaau!
- É isto! Ufff! É isto!
- Párem já com essa merda!!!
- Que foi?
- Sim, o que foi?
- Seus vândalos! Seus demónios! Não se contentam em destroçar o coração de um pobre velho, ainda gozam com ele, seus filhos duma valente puta! Mas esperem aqui que eu já vos digo. Ó Liça, anda cá!
- Diga, Bráulio.
- Anda cá pôr-me essas tetas a jeito e, já agora, essa coninha, que temos uma lição a dar a estes miseráveis.
- É para já.
- Ah! Uiiiiii! Isso, Bráulio! Uaaaaaau!!! Meu Deus! Ah! Tão bom! É incríiiiiivel!
- Sim, mas não faças escândalo. E não te venhas sem me pedir autorização.
- Aaaaaah! Uuuuuuui! Aaaaaau! Tou quase, tou quaaaa....
- Pára!
- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!
- Puta! Desautorizaste-me!
- Ai foi tão bom...
- Estava a ser, mas estragaste tudo.
- Porquê?
- Porque estes cabrões agora vão duvidar do meu domínio absoluto sobre ti.
- Cabrões? Quais cabrões? Não vejo ninguém.
- Como assim? Co.. Olha, foram-se embora!
- Também, já não era sem tempo.
- É, acho que tens razão. Faz-me uma coisa, por favor: traz-me o jornal. Está-me a apetecer ver a página das mamas.
- É para já!

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

CINEMA

“Achei interessante”, dizia, de cigarro na mão, a Bafiela. À volta dela, outros cromos repetidos da cultura portuense assentiam de sorriso místico, como se ela estivesse a dizer uma grande coisa. Eu, farto daquele “já há”, saí dali tipo camisola do brasil: verde e amarelo. Sim, sim, era tanto o nojo que transportava. Só que, dessa vez, ela notou. E, pedindo desculpa aos parceiros de tertúlia, veio atrás de mim. “Ei!”, chamou. Eu, já com a chave do carro na mão, olhei-a, surpreso. “Desculpe, eu sei que não nos conhecemos, mas não pude deixar de reparar no seu olhar para mim, agora mesmo, à saída do cinema. Tem alguma coisa que me queira dizer?”, perguntou. “Não, nada. Porquê?”, devolvi eu, mula. Pensei, momentaneamente, em pôr à prova a sua perspicácia. Se ela era tão boa a interpretar filmes impenetráveis, a ponto de toda aquela plêiade de hemorróidas cultas se curvar à mera pronunciação da palavra “interessante”, não demoraria nada a perceber o que me ia na alma. “É que fiquei com essa ideia... Pareceu-me incomodado”, respondeu. “Incomodado, eu? Desculpe, mas não estou a ver aonde quer chegar. Então eu saio do cinema, venho para...”. Interrompeu-me: “Claro, claro. Não se preocupe. Eu é que tenho de me desculpar. Boa noite”. Em passo lento, de quem pensa, voltou para junto da nata da cidade. Eu, ainda com a chave do carro na mão, fiquei como o tolo no meio da ponte. Por um lado, queria-me ir embora, até porque estava a precisar de dormir. Por outro, sentia-me insatisfeito, apetecia-me puxar um bocadinho mais aquele fio, ver no que é que aquilo dava. Guardei a chave no bolso e voltei ao cinema. Desajeitado, toquei-lhe na gabardina, pelas costas. Ela voltou-se e, como se já estivesse a contar, sorriu. Despediu-se dos presentes, olhou-me e perguntou: “Vem?”. Acompanhei-a naquele seu passo, sem saber até onde. Em silêncio, fui guiado até ao meu carro. “A partir daqui é consigo”, disse ela finalmente, numa ambiguidade calculada que parecia querer sublinhar a sua percepção de que, na balança dos meus sentimentos, o encanto passara, subitamente, a pesar mais do que a repulsa. Sem ponta de charme, perguntei-lhe onde morava. Ela riu-se, já nas suas quintas, como se morasse ali mesmo, naquele corpo, naquela aura segura. “Quer boleia?”, arrisquei. Escusado será dizer que houve um segundo de intervalo antes da resposta dela. Um segundo de silêncio – não a preceder o jogo, como acontece no futebol quando alguém morre (aí é um minuto, eu sei), mas a meio, justamente no seu epicentro. De um lado, o sadismo; do outro, a vulnerabilidade. A vitória estava mais que anunciada, e não havia ali árbitro à vista para subornar. “Por que havia de querer?”, questionou ela, a fazer render o peixe, como um artista da bola que, em posição de remate e com a baliza aberta, prefere adornar um pouco mais a jogada para aprimorar o golo. “Não sei, trouxe-me até aqui”, justifiquei, desconfortável. “Trouxe-o até aqui porque o achei interessante”, justificou ela, enorme. “Acha tudo interessante?”, provoquei, num improvável contra-ataque de ironia que ela, estranhamente, não percebeu: “Como assim?”. De repente, a bola estava do meu lado: “Disse o mesmo sobre o filme, há pouco, aos seus amigos”. Foi então, quando eu já esperava um novo e bem mais saboroso segundo de silêncio, que ela, semicerrando os olhos, enervada, incrédula até, se revelou: “Olha, meu filho da puta: se me quiseres comer o cu, muito bem. Se não quiseres, há mais quem queira! O que eu não estou é para aturar estas merdas! Por falar nisso: tens SporTV em tua casa?”.