domingo, 22 de julho de 2007

QUÍMICA

Olha o Falso! Então, Falso? Há que tempos! Tás fixe? Olha, esta é a Foca, uma amiga minha. Que cena, pá! Tás bem? Fogo, olha, a gente vem dali, tá lá assim uma cena mesmo indescritível, um electro meio marado, misturado com não sei o quê… Ó pá, nem é rock nem é aquele pop pop, sabes? E o gajo mistura maaal, Falso! A sério, não tás a ver! Eu e a Foca já nos távamos a passar. [faz uma festa no peito de Falso como se lhe estivesse a limpar o pó e volta à carga] E tu? Tás aqui, quê, a fumar um cacete? [Falso não fala, só sorri, meio envergonhado] Iá… Ó pá, mas tás fixe? Que cena, já não te via há bué! [Foca, essa, está prestes a deixar cair o sorriso] Este gajo [virada para Foca] é que é o guitarrista dos Phones! Eu tenho de te mostrar Phones, estes gajos são muito fora! Mesmo! [este “Mesmo!” é dito com os olhos em brilho, toda ela parece uma espinha de deslumbramento a rebentar] E… e já têm cenas novas? [hesita na pergunta porque se apercebe, finalmente, de que os amigos de Falso estão com cara de sopa azeda] Ah, desculpem lá: eu sou a Cláudia. Ela é a Foca. [eles ruminam, em jeito de anuência] [fica um silêncio agreste] Pois é, Falso… Vê lá se dizes alguma coisa! Ainda tens o meu telemóvel? [Falso faz sinal de que sim] Tens qual? O 91? [ele repete o sinal] Ah, é que eu agora também tenho um 93, se calhar dá-te mais jeito [Falso faz sinal de que não] Iá, então olha, a gente vai bazar! Bute aí, Foca? [Foca arrota, nervosa] Xau, pessoal! [elas afastam-se, com o estilo possível; eles certificam-se disso] [por fim, Falso fala] Ó Brito, faz esse!


sexta-feira, 20 de julho de 2007

JURA

Adoro havaianas. Se alguém bate à porta dizem: “Havai!”. Têm curvas, biquinis reduzidos e adaptam-se a nós. Às vezes fazem demasiado barulho, sobretudo quando o suor nos cola o corpo ao delas. Mas têm um ritmo próprio, lascivo, sensual. O problema é que, passado o Verão, perdem o interesse. Ainda há dois meses comprei umas para a minha mulher e ela já não as usa.

ROMA

Passava horas ao espelho. Revia-se nele. Eram ambos incrivelmente superficiais. O reflexo da sua imagem pouco lhe importava, era mesmo pelo espelho que ficava ali, horas e horas, para desespero da namorada, que o tinha como o maior narcisista à superfície da terra. Dizia-lho vezes sem conta, mas ele não se aborrecia. Gostava de ouvir a palavra superfície, fazia-lhe lembrar o espelho. Ela, no seu profundo desespero, procurava mostrar-lhe que havia outros espelhos. "A lua, por exemplo, é um espelho do amor". Ele não fazia caso. Dizia "pois" e continuava a perscrutar a magnífica superficialidade daquele objecto pendurado acima do lavatório. Daí saltava, às vezes, para a televisão, quando dava futebol, mas depressa perdia o interesse no jogo e focava o olhar no ecrã, fazendo análises comparativas entre este e o espelho, que saía sempre vencedor. O mesmo se passava com as janelas, os pratos, as ruas ou o corpo da namorada. Eram subperfícies, cópias imperfeitas do espelho, esse sim a verdadeira expressão formal de Deus. Um dia, ao ter este raciocínio, sentiu-se profundo. Ficou doente. Feliz mas preocupada, a namorada levou-o a um médico, depois a outro, a outro e a outro. Nenhum lhe soube dizer qual era o problema. "Mas ele anda estranho, opaco, senhor doutor! Parece um fantasma, uma sombra do que era", insistia ela, já sem sequer esperar pela resposta. Não tardou muito a que os papéis se invertessem: ela a estudar o espelho e ele a estudá-la a ela. Foi assim durante anos, precisamente os mesmos que ele passara a olhar o espelho. Até que, enjoado de olhar para eles, o espelho se partiu. Cristalizados, ela e ele olharam-se como nunca antes e nunca depois. Num mundo sem espelho, lua ou futebol, foi amor à primeira vista.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

ADEUS

Se levas nas tuas asas
o fio da minha paz
não voes para lá das brasas
onde arde este corpo frio
que jaz

Deixa-o ao menos ser alma
enquanto acaba de arder
e bate as asas com calma
para que não lhe custe tanto
morrer


domingo, 8 de julho de 2007

PAZ


Hiberno, 48 anos, tivera uma vida inteira para se habituar ao ciclo: dois dias radiante, um na mó de baixo. Era sempre assim. E ele, de facto, já não se importava. Na verdade, até lhe sabia bem poder planear a vida com a antecedência que quisesse. Bastava fazer contas aos dias. Só que um dia, sem contar, Hiberno percebeu que a sua vida tinha os dias contados. Triste, num dia em que era suposto estar contente, decidiu contar a sua vida. Era barbeiro, rapava pêlos todos os dias. Ou melhor, dois dias sim, um dia não, porque, pelo sim pelo não, preferia respeitar o ciclo. Cortava o que crescia, como na vida, antes de ser contada. Contava isto quando, de repente, contente, num dia em que era suposto estar triste, decidiu cortar a sua vida. Conta-se que ela voltou a crescer, mas sem Hiberno. Esse, diz quem lhe sente a falta, hibernou.

sábado, 7 de julho de 2007

SIGA

Eu estava ali, tenso, emaranhado, ansioso, à espera de uma pequena aberta no fulgor do trânsito para atravessar a rua. Sabia que não podia tremer, caso contrário atravessava-me a rua a mim. Para evitar isso, no entanto, tinha de atravessar primeiro outra rua, que me punha ainda mais tenso, emaranhado e ansioso. Era a minha rua. Tinha de passar para o outro lado, o meu lado tranquilo, lúcido e paciente. E aí, naquele preciso momento, o trânsito estava tão infernal como me parecia o meu problema. Pensei então que se engolisse a minha rua talvez me fosse permitido ficar ali, do lado de cá da outra rua, parado, invisível. Fi-lo, mas o sangue quente dos carros vomitou-me a rua de volta. Sem escolha, levantei o dedo. As duas ruas ficaram, por um momento, a olhar uma para a outra. E eu, o melhor que pude, atravessei a rua que se desenhou entre elas.

PENA

A fruta está lá, aberta, em ferida. Da lâmina da faca escorre a crueza, a marca líquida do assassino. É aquele o sumo da verdade, mas nenhum de nós o bebe. Corta! Ok, não está mal, mas tens de dizer isso com mais certeza, como se estivesses tu a cortar a fruta. Vamos lá repetir. A fruta está lá, aberta, já um pouco oxidada. Da lâmina da faca escorria a crueza, a marca líquida do assassino. Foi pelo cano o sumo da verdade, nenhum de nós o bebeu. E agora só nos resta a fruta. Podre.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

ANTUÉRPIA

Sou o que se chama um bode expiatório. Mas o que é que um bode expiatório se chama? Pois. Por não saber isso é que eu não sei o que sou. Já fui a uma série de montanhas, vivi com os bodes, conversei com eles, até soube o que eles se chamavam, mas nunca tive a sorte de encontrar um expiatório. Não estou a falar daqueles que, como eu, se dizem bodes expiatórios mas não sabem o que um bode expiatório se chama. Assim também eu era bode expiatório. Não. Estou a falar de bodes expiatórios verdadeiros, coisa que eu nem sei se há, além de mim. O que eu sei é que há sérias hipóteses de eu ir para o galheiro sem nunca ter sabido quem sou. E isso deprime-me. Faz-me sentir um bode expiatório.

GAJAS

Pereira nasceu Pereira, mas queria morrer Júlio. Detestava continuar, para ele continuar era morrer. E morrer Pereira, isso não. Orlando, já morto, amava o mundo. Foi, aliás, o seu único amor. Aquele pelo qual morreu. Mas morreu para quê, se quando morto se afastou justamente desse amor? Era assim, ninguém o compreendia. E era obsessivo, porque, mal morreu, foi logo para outro mundo. Repetia-se, como eu estou a fazer agora. Pereira não. Pereira era a novidade. Acho que, nele, a única coisa que se mantinha era mesmo o nome. O certo é que, em vida de Orlando, não havia amigos como Orlando e Pereira. Davam-se mal. Mas davam-se. A Orlando, os amigos passavam a vida a dizer: “Pá, especifica-te, não sejas tão lato!”. A Pereira, os amigos, que eram os amigos do Orlando menos o Pereira, diziam exactamente a mesma coisa. Talvez por isso, quando Orlando morreu, Pereira ouviu os amigos. E mudou de nome. Para Júlio.

terça-feira, 3 de julho de 2007

PONTO

Aquele riso quebrado, tipo gaivota, dava-me cabo dos nervos. Isso e o falar à bebé, um clássico do pós-coito: sequenciava onomatopeias de mau hálito a milímetros do meu nariz, como quem faz bolas de fumo, convencida de que lhe ficava bem. Eu já não a podia ver à frente, andava mesmo agoniado, mas não tinha coragem de a pôr a andar. Custava-me imenso a ideia de ser eu a acabar com o relacionamento, porque achava que a ia fazer sofrer mais e não suportava arcar sozinho com as culpas disso. Então sofria eu. Espumava. E explodia, claro. Volta e meia rebentava-lhe o focinho. Era como um bálsamo, aquilo sabia-me pela vida que eu não tinha. Depois, pronto, fazíamos as pazes, íamos para a cama e lá vinha o infantário do mau hálito. Isto era cíclico, inescapável. Eu olhava para o hamster dela a correr na roda e ficava roído de inveja. Até que um dia decidi matar-me. E matei-me.


ZORBA

O Zorba era um cão fabuloso, nunca fazia nada à espera do osso. Eu até podia acabar aqui este texto e “postá-lo” mesmo assim, que ele não se chateava. Às vezes ficava horas nos degraus da sala a ver-me ver televisão. Era maior do que eu. Em tudo. Eu prendia-me a uma realidade. A dele incluía-me. Um dia, sem que nada o fizesse prever, pediu-me o divórcio. Não deu razões, mas bastou-me olhar para ele para ver que era coisa séria. Assinei os papéis sem pestanejar, mas cá por dentro estava como se o meu cão, o Zorba, me tivesse pedido o divórcio. Chorei dias e dias. Lágrimas, por acaso, não. Demorei anos a ultrapassar a dor de não o ter ali, comigo, a sublinhar o nada, que era o que eu fazia. A consciência de que, finalmente, estava pronto a amar de novo só me chegou há coisa de uma hora, quando dei com a Rela, que é a cadela da vizinha, a espreitar pela janela cá para dentro, vendo-me a ver televisão. Abri-lhe a porta, claro, e adoptei-a. Minutos depois, quem me aparece à janela? O Zorba! Estava a chegar de Marrocos, aonde foi engolir uns ovos de haxixe para vender cá, e vinha à procura dela, da Rela. Iam-se casar. Combinaram ali, na minha casa, porque ele queria que ela visse a estupidez de vida que ele teve durante tanto tempo, e também porque estava a dar o Herman. Eu senti um misto de tristeza e felicidade. Tristeza porque ficava sem pau nem bola. Felicidade porque já tinha quem partilhasse a minha tristeza: a vizinha.


FRINCHA

Há uma frincha que dá lá para fora, mas eu continuo aqui, sentado. Pergunto-me se vale a pena levantar-me e dar dois passos até à porta só para espreitar pela frincha. Concluo logo que vale, mas não a pena. Vale outra coisa. Vale um depois melhor, talvez, quem sabe? Mas a dúvida, por enquanto, é suficiente para me manter quieto, inquieto, no lugar. Ponho-me então a ver se crio, se distraio a mente da preguiça do corpo. A única coisa que concedo mexer são os dedos das mãos – e a boca de vez em quando. Mas nunca as suíças. Isso nunca. É, para mim, uma espécie de desígnio sagrado. Desde que tomei consciência de mim enquanto ser diferenciado não tive a mais pequena dúvida quanto à necessidade ética de manter toda a vida as suíças imóveis, contra ventos e marés. Conclusão: nunca descanso. Há alturas em que até tenho vontade de jogar à lerpa. Mas, pronto, voltando atrás: mexo um dedo, mexo outro, mexo os dois juntos, relaciono-os e, de repente, acho que já fiz demais. Não sei por que sou tão ansioso. Um dedo, coisa linda. Outro dedo, coisa linda. “O que é que fizeste para o comer, Saia?”. Pois, já vi que nada. Esta minha mulher passa o tempo todo a babar-se, não faz nenhum. Eu ainda mexo os dedos, mas ela... tem hoje uma entrevista, tem. No meio disto tudo, quem nos faz as compras, quem nos lava a roupa, quem nos limpa a casa, ou seja, quem vive por nós... é o Fó. O Fó, que eu já não via desde amanhã às 18.00, é uma alma rara, um rapaz como qualquer outro. Neste momento, por acaso, até me está a irritar, porque se pôs a pregar um bocado de madeira por cima da frincha que dá lá para fora. Vou ter de me levantar, dar-lhe um soco, sair de casa, comprar o jornal, enfim, arriscar mais uma vez o compromisso de honra que tenho com as minhas suíças.


JOEL

Vou a Lisboa, não vou a Lisboa. Vou a Lisboa, não vou a Lisboa. Ando nisto. É uma espécie de montanha russa, só que não me anima. Acho que vou mudar de atitude. Ora bem, se eu comprar mesmo o bilhete para Lisboa, ultrapasso este vai-não-vai, quanto mais não seja porque, comprando-o, já estou a dar um passo no sentido de ir e, nesse sentido, já vou. Quer dizer, até posso não ir, mas em certa medida já fui – a medida de um passo. Que não é propriamente um passo, pronto, ou melhor, até é um passo pronto, mas não é um passo, ponto. Olha, sabes que mais? Não vou! Ou vou?


ROSBIFE

Um dia destes recebi uma carta que dizia: “As algálias submarinas que inviabilizam a combustão do seu notário serão combatidas com estrepitosa e humedecente bavaroise“. Logicamente, de tudo isto o que me pareceu mais estranho foi o “do”. Não, é que “do” meu notário, quando poderia ser “do” ou “o” meu notário, na perspectiva de quem usa não faz sentido. Mas o facto é que a carta lá estava, caída, à espera da minha mão.
Vim para dentro e sentei-me no sofá, a analisá-la dos pontos de vista semântico e arquitectónico. Era sem dúvida um caso para o meu Licínio. “Ó Licínio!”, gritei, mas nada. Depois ri-me, claro: não conhecia nenhum Licínio. Há já vários anos que me dava disto. Inventava pessoas para encobrir a minha solidão. De repente, mesmo tacteando a carta com os meus nove dedos (o décimo estava lá fora a bater à porta), pus a hipótese de ela própria ser uma invenção, o que configurava algo de ainda mais estranho.
Tomei banho, vesti-me com a melhor roupa do guisado anterior e saí sem saber para onde, mas determinado como se me apontasse à última carruagem da felicidade. A uns dez metros de casa, tropecei noutra carta. Dizia: “Fiolhais, se passas mais uma vez no Realejo, pá, podes ter a certeza de que as ganaderias de Monsanto vão ser afectadas ao défice”.
Mais curta e concisa, esta dava-me uma acção. Ao menos isso. Percebi que precisava de um narrador, mas ali perto só havia lojas de fios. Vagueei, vagueei, até encontrar um estudante. Fez-se luz. Digo eu para mim: “O gajo que escreveu a primeira carta é igual à soma das empadas VIP”. Estava radiante.
Voltei para casa a correr com aquele frenesim de pôr tudo em pratos limpos, mas antes passei só nas Galerias Cebolo, que me fazia jeito. Porquê? Não, por nada, é outra história. Tem a ver com uns outdoors. Bom...
Retemperado, já de chinelos postos, fui dar um beijinho às santolas. A santola 1 dormia profundamente, a 2 está tão habituada a que eu vá lá despedir-me que não consegue adormecer sem um bom par de estalos. Eu sentia-me bem por poder, finalmente, encher o meu copo de whisky e bebê-lo a conta-gotas deitadinho no sofá. E foi o que fiz. No dia seguinte ardia-me imenso a plebe.