sexta-feira, 2 de novembro de 2007

FALSA PARTIDA

Acaba de cair um prédio aqui ao meu lado, as pessoas ainda nem tempo tiveram para reagir, mas eu já estou em pânico, à espera do que irá acontecer. A poeira levanta-se e, assim de repente, não me lembro de nada que me possa acalmar a não ser um beijo teu. Estou sobressaltado, só assim se justifica um recurso poético tão fajuto como o que acabei de usar. Tens de compreender, o prédio só caiu agora, eu ainda não sei como reagir a isto, as próprias pessoas, lá fora, que não têm crises de ansiedade como as minhas, ainda não sairam do silêncio. Permanecem, imagino eu, boquiabertas com o sucedido, naquela franja temporal em que o dedo de Deus faz pause no mundo, ou neste mundo, neste mundo pequenino que é o meu, cada vez mais centrado em ti. Tu desculpa, eu sei que estou com metáforas hediondas, mas antes isso que peidos. Se fossem peidos tu não aguentavas, era um fedor desarmante, até para mim que já os conheço. Espera, estou a ouvir qualquer coisa, acho que é uma mulher a gritar, talvez sejas tu. Não, não, isso agitava-me imenso e eu agora não posso sair daqui, tenho de travar esse pensamento. Não, de maneira nenhuma, tu nunca serias, olha que história, o que é que tu andarias aqui a fazer? Só se fosse para me veres, mas isso era impossível, tu não queres nada comigo, já mo disseste uma dezena de vezes e eu não creio que mudasses assim de opinião por dá cá aquela palha. É claro que os prédios também não caem todos os dias e hoje caiu um mesmo aqui ao meu lado, mas isso não tem nada a ver, a não ser que tenha. Talvez estejas magoada, se calhar é melhor eu ir lá abaixo. E daí não. Sinto-me mais útil aqui, à beira do telefone. Se te tiver acontecido alguma coisa, e se eu me aperceber, posso chamar uma ambulância mais rapidamente. É isso, apesar de tudo ainda consigo raciocinar, já não é mau, no meio deste terror. Nunca pensei manter o sangue frio numa situação destas, confesso-te, sempre achei que quando te visse em perigo ia berrar histericamente até que alguém me acudisse, mas não, estou-me a controlar, como vês, e isso é positivo para a nossa relação, se sobreviveres agora e se um dia achares que a podemos ter. Apetece-me espreitar pela janela, mas é forte demais para mim. Não suportaria ver-te debaixo de um pedregulho, esvaída em sangue, às portas da morte. Dava-me vontade de me atirar cá de cima e morrer juntinho a ti, como nas tragédias românticas. Para mim, juro-te, não teria nada de trágico, era até um sonho, um sonho de amor, coisa magnífica. Olha, sabes que mais: já abri a janela! Vou espreitar! ESTÁS AÍÍÍ? ENTÃO ESPEEEEEEEEeeeeeeee...
- Ó Alves!?
- Hã? O quê? O que é que foi, mulher?
- Foda-se, que puta de berro tu deste agora!
- Eh pá, desculpa lá, estava a dormir.
- Pois, e eu tenho que me levantar às seis e agora vai ser o caralho para voltar a adormecer...