segunda-feira, 31 de maio de 2010

AS PUTAS

Sinto dever para com quem não tem os meus direitos. Passo, todos os dias, por muita gente que vive de si, apenas, sem qualquer enquadramento externo que não o universo, sem outro tecto que o horizonte vertical, reconfortante, ainda assim, na sua aparência finita, sem outro chuveiro que as nuvens, a cuja vontade própria essa gente obedece, ou resiste, consoante as ordens da sobrevivência, sem outra mesa que a caridade ou o lixo, tantas vezes a mesma coisa, o mesmo despejo, que importa se de culpa ou de sobras materiais, sem outro prazer pessoal que o sentirem-se inteiros, já quase irredutíveis, com cada vez menos a perder, sem outro prazer social que a liberdade, quando ela existe, de fazer amigos entre os iguais, de ser iguais aos iguais, aos que também não têm direitos. É difícil admitir que eles, estes seres humanos, não são os restos do mundo, são o mundo inteiro, contas redondas. As migalhas que escapam são o pó da bola, parada, resignada a girar apenas, como um cão que persegue o seu rabo sem nunca apanhar a pulga, mas ainda assim contente por ver as migalhas, o pó, mudar de sítio ao sabor do seu movimento. Simples panaceia. É como diz o provérbio: enquanto o pau [o pó] vai e vem, descansam as costas. E no mundo, como todos sabemos, não há complacência para a tortura das costas, humanas e geográficas. Das costas e dos corpos, da terra inteira, dos continentes, que vão sofrendo e respirando mais e menos consoante as levas de pó, os ventos da ganância e os mares do egoísmo, que se vão habituando a desejar o mal dos outros por já só conceberem o seu bem à escala dele, tão funda vai a cegueira neste olho suspenso do universo, neste olho que, apesar de tudo, ainda gira, ainda espera que o olhemos, não aceita que sejamos dois com ele, ele o planeta e nós o anel, dois olhos da mesma cara, duas órbitas que nem do estrabismo nem da ciência se podem valer, dois poemas impedidos pelo visível, pelo palpável, de pousarem um no outro, reconhecendo cada um ao seu espelho que o amor é tudo aquilo de que a carne os separa. A carne, a razão concreta, a mãe da luta, a filha da puta. É por ela que protagonizamos este espectáculo sangrento da história humana, é por ela que queremos sempre mais guerras, mais vitórias de menos vencedores, menos deveres para quem tem mais direitos. É pelo dinheiro que gastamos o tempo, é pelo fruto que cortamos a árvore, é pela imagem que esvaziamos a substância, é pelo poder que proibimos, é pelo luxo que escondemos o lixo, é para seguir em frente que não olhamos para trás, é pela filha da puta que matamos a mãe. É por nós que não nos queremos. Nós, os filhos da puta. O que é, afinal, uma puta, uma puta homologada, se não alguém que vende o seu corpo para ganhar a vida, que o faz às claras, sem dissimular, sem enganar, que dá o que tem e a muito mais é obrigada por uma sociedade de fundo falso, ingrata, sem raiz, que se serve a todos os níveis desse exemplo de coragem, que se limpa diariamente a essa fralda, que desmente a autenticidade desse seu reflexo e faz dele sombra, sombra perseguida? As putas são, na verdade, oráculos, e não falo do que têm entre as pernas, não, são espelhos da loucura humana, da esquizofrenia da espécie, nessa demonstração inequívoca que proporcionam sobre o valor da carne: se uma pessoa vende o cérebro ou a alma, e poucas são as que hoje não o fazem ou tentam fazer, é um homem de sociedade, um exemplo de responsabilidade social, um cidadão do futuro, um indivíduo credor de todo o respeito; já se vende o corpo, e não tem a sorte de ser exclusiva de um desses portadores de virtude, é uma forma de vida moralmente repulsiva, uma doença contagiosa, uma vergonha para a sociedade, um coração pulsante que não merece estatuto, reconhecimento de dignidade, igualdade de direitos, amor, compaixão, gratidão, nada. Nada que não sejam uns trocos, pénis erectos a entrar-lhes pelos buracos adentro, suores porcos a untar-lhes a pele, ruídos animais a comer-lhes os tímpanos, como se já não bastasse o resto, e quem sabe umas chapadas, uns insultos e todos os maus-tratos que, cobardemente, ficaram por dar aos devidos destinatários. Eu nunca fui às putas, ou melhor, nunca fui com uma puta, mas ponho o meu nome em qualquer lista que defenda a sua profissionalização, que lute por lhes ser dada assistência social, por lhes serem concedidos cuidados médicos, por lhes ser reconhecida toda a coragem e a dignidade que se atribui sem qualquer engulho, e só para dar um exemplo, aos mineiros. As putas são mineiros e minas, escavam o seu lugar ao sol por entre a escuridão do preconceito e da hipocrisia e são, claro, também elas perfuradas, alarvemente perfuradas, quer no seu corpo quer na sua alma. São paredes vivas, histórias ocultas como tesouros escondidos, enterrados, literalmente enterrados, ou emparedados, árvores humanas, anjos da noite, mulheres, mães. E nós, queiramos ou não, somos filhos delas, filhos de todo o tipo de prostituição acumulada que fomos varrendo para debaixo do tapete, desde o princípio dos tempos. Se isto custa a engolir, imaginem o que elas passam.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

A CRISE À MEDIA LUZ

Não é de hoje que, para mim, a decifração da mensagem mediática devia constar dos programas do ensino básico. Todos os dias vejo pessoas a viver no passado e no futuro, atormentadas que estão pelo agoiro jornalístico, agora tão comprazido nesta possibilidade de chupar a crise até ao tutano, como se esta fosse não a madrasta que tanto lamentam, mas a costeleta mais apetitosa que já alguém lhes pôs na mesa. Desculpem os que acharem este discurso uma irresponsabilidade, mas estou plenamente convicto de que a melhor maneira de responder a todas as crises, e também de as evitar, é estar presente em cada momento, é aquilo a que comummente chamamos ter sangue frio. Só assim um piloto de avião pode pensar em aproveitar a percentagem mínima de hipóteses de salvação que se lhe apresentam se os motores do aparelho deixarem de funcionar. Se pensarmos nos media, e em quem neles faz ouvir a sua voz, como pilotos de um avião que se chama Portugal, a atitude generalizada corresponde a abrir a cortina que dá para os lugares dos passageiros e gritar: “Gente, vamos cair!”. Muito se fala, e já fede que chegue, das melhores medidas a adoptar para uma pessoa se proteger da crise. Pois eu avanço já uma: desligar a televisão. Se não for suficiente, como se prevê que não seja, outra há: deixar de ler jornais e de ouvir serviços noticiosos na rádio. Quem o fizer vai ver que rapidamente se encontrará num estado bastante mais calmo e propício a juízos acertados. Antes desta crise, e estou longe de ser o primeiro a assinalá-lo, de muitos outros problemas se inventaram crises. A saúde pública, então, tem sido terreno fértil para extrapolações criminosas a reboque de interesses privados, da BSE ao Antrax, da Gripe das Aves ao H1N1, numa sucessão que será retomada assim que a crise termine, porque, justiça seja feita, se há algo que, no seu afã malévolo, tem mostrado compreensão pelos momentos de drama social são os vírus e as bactérias, muito bem comportadinhos na fila, sem protestar, à espera da sua vez para atacar o mundo quando este não tenha outros problemas mais importantes com que se debater. O mundo, ou melhor, o mundo visível, claro está, já que em certos lugares do mundo, em lugares tão imensos quanto esquecidos, talvez por se levar demasiado à letra o facto de terem paisagens a perder de vista, os vírus e as bactérias e as crises e os crimes se juntam todos, em qualquer altura, sempre, como as próprias vítimas deles, à procura de alimento. A essas vítimas, porém, é que as notícias não dão voz. A essas e às de cá, de Portugal, da Europa, que também não faltam. São os Ricardos Salgados deste planeta, cujas empresas não só apresentam lucros milionários como aumentos milionários desses mesmos lucros, que vêm dizer a quem se unha e desunha para aguentar o seu barco que estamos “no meio de uma tempestade”, que é preciso fazer sacrifícios. Os media, como qualquer produto de consumo, alimentam-se do medo. Aliás, e desculpem lá este parêntesis etimológico, coisa que já vem sendo habitual nos meus textos, as duas palavras terão por certo algo em comum, medo e medium, medo e media, o que, noutro contexto, até me faria armar em reciclador de Mcluhan e afirmar qualquer coisa como “O medo é a mensagem”. Porque é, cada vez mais. Veja-se, por exemplo, a atitude felina de Fátima Campos Ferreira, no programa televisivo do regime, que é mais de bate do que debate, a quebrar todo e qualquer raciocínio dos seus já criteriosamente escolhidos intervenientes que não contribua para adensar o clima de pânico que se vive no País. A eleição dos próprios temas, o próprio nome do programa: Prós e Contras. Então não estamos todos em crise? Então e para combater a crise não é melhor que nos juntemos todos? Então e só há uma coisa e o seu avesso? Então e o equilíbrio, o meio termo, a convergência? Então Aristóteles, se vivesse hoje, não teria assento no Prós e Contras? E porquê, em cenário de crise, fazer prevalecer o alegado, mas muito discutível, interesse empresarial da televisão pública, cortando e colando discursos ao bel-prazer da testa franzida, da pose consternada e da voz grave de Fátima Campos Ferreira, quando todos beneficiaríamos de uma concessão circunstancial, automaticamente justificada, que permitisse aos convidados, dentro daquilo que é o senso comum do bom-senso, desenvolver os seus raciocínios sem pressa ou pressão, com a lucidez e a clareza que só (e voltamos à questão inicial) a paz de espírito proporciona? Há muitas perguntas para devolver aos media, mas infelizmente eles são o paradigma do provérbio “Em casa de ferreiro, espeto de pau”: entram cada vez mais despudoradamente por todas as casas, por todas as crises, por todas as intimidades, e não deixam ninguém entrar nos seus domínios sem uma escalpelização prévia e uma filtragem apertadíssima dos motivos da visita. Com tanta febre documentarista que hoje se testemunha, com tantos Michael Moores (por quem eu não tenho, devo dizer, particular simpatia, já que o entrevejo como um clown do sistema, o pain in the ass tão útil ao establishment, a excepção inevitável para confirmar a regra), já alguém se perguntou porque é que nenhum realizador português se interessa por fazer um documentário sobre a lógica de funcionamento dos media, a vida dos jornalistas, as suas condições de trabalho, as pressões a que são sujeitos, a perspectiva que os patrões têm do jornalismo, a forma como são abordadas as histórias, a facilidade com que se espreme o sangue e se deita fora o corpo? Pois eu digo: primeiro, por ignorância; segundo, por medo; terceiro, por impossibilidade prática de um trabalho independente, verdadeiro, como dizer…, jornalístico. Mas seria da mais elementar importância. Talvez as pessoas pudessem perceber um bocadinho melhor que, nisto das crises, como em muitos dos fenómenos justificativos dos sacrifícios sociais, e desculpando-me desde já pelo travo desagradável que o final deste texto possa deixar no leitor, se aplica com justeza outro provérbio: “Quem se queixa é quem larga a ameixa”.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

DOIS ESTRANHOS, TANTOS DESTINOS

Quando entro num táxi, sinto sempre algum desconforto, um certo receio de que o meu pedido não vá satisfazer o taxista, ou por a distância ser curta ou por a distância ser longa, não sei, ou por eu ter uma nota grande para um custo pequeno, ou então pela hipótese de não lhe apetecer, naquele momento, sair da postura, por estar com sono, por estar cansado, por ter vontade de soltar a bexiga ou, pior, o intestino (digo pior porque se, até hoje, ainda não apanhei nenhum taxista que urinasse no carro, já tive a experiência de vários que, educadamente, comprimiram os gases até ao limite das suas possibilidades e deixaram que eu saísse antes deles, bem como de outros que os largaram placidamente com um desplante esfíngico, deixando-os tomar conta do habitáculo e de mim, de todo eu e, claro, virando do avesso a natureza altruísta do meu desconforto inicial), ou pela eventualidade sumamente azarada de todos esses condicionalismos convergirem naquele módulo andante, que mais valia ficar parado, se assim fosse. Quando me sento, já depois de perguntar se posso e, confesso, nem sempre esperando pela resposta (essa é uma das minhas falhas, tenho talvez de dar um segundo mais, de não fazer daquilo mera circunstância, mera formalidade, devo se calhar aproveitar o momento para tomar o pulso à relação entre o veículo e o condutor, e entre ambos e eu próprio, embora não me esteja a ver a recuar, no caso de a conjuntura não me cheirar, literalmente ou não, bem, por isso pouco interessará o cuidado), fico com os sentidos alerta, atento ao mais pequeno sinal que me permita aferir do estado de espírito do homem, ou da mulher, isto hoje nunca se sabe, que me aceita como passageiro. Depois, indico o destino que pretendo e predisponho-me ao que vem, se o silêncio mais comum, se o “sim senhor” também frequente, se o “t…”, de enfado, que tanto me indigna como me inspira compaixão, dependendo de para onde estou virado, ou se o, mais raro, é certo, mas sempre possível, “f’dasss” , para o qual não há, ou eu não encontro, outra resposta que não engolir em seco e olhar lá para fora. Já no trânsito, opto geralmente por permanecer calado; gosto de que a primeira nota seja dada pelo taxista, uma vez que a última, aconteça o que acontecer, sai sempre do meu bolso. Se ele é comunicativo, se fala das obras na cidade, dos engarrafamentos, do tempo, de mulheres (partindo do princípio de que, se ele for ela, ou seja, se for uma condutora, não me vai falar de homens, primeiro porque não está no código de conduta, depois porque não é costume nas mulheres que conversam com homens desconhecidos e, finalmente, porque o assunto poderia melindrar o passageiro, fazê-lo sentir-se ofendido, tomado por algo que repudiasse ou o perturbasse, nunca se sabe), das asneiras dos políticos, seja do que for, eu dou troco, mais ou menos consoante a minha disponibilidade mental, o meu estado físico (na maior parte dessas vezes débil, ou então não apanharia um táxi, até porque não sou uma pessoa muito acossada pelo tempo, pelo relógio, e gosto imenso de andar a pé, posso calcorrear a cidade inteira e mesmo um ou outro concelho limítrofe, se disso me sentir capaz) e o interesse da conversa, claro. Se, pelo contrário, o motorista é calado, negócio fechado, ninguém abre a boca e tudo corre sobre rodas. Há, no entanto, um outro tipo de taxista, um híbrido, que me deixa sem saber o que fazer: é aquele que, durante a viagem, não nos dirige uma palavra, mas passa a vida a insultar quer os transeuntes quer, sobretudo, os outros condutores, normalmente de janela fechada - ou, no caso de estar aberta, com o carro em andamento. “Ó filha da puta!”, “Vai pó caralho, ó paneleiro!” ou “Não vês o sinal, ó boi?!” são alguns dos inesgotáveis diamantes que atiram boca fora, e se, por regra, a sua raiva é auto-suficiente, não necessitando da nossa anuência, há casos, dentro desta modalidade específica de taxista, em que as bombas têm efeitos colaterais, do tipo “Você já viu isto?!” , o que, no entanto, embora aparentemente nos intime a tomar parte, é também, tal como a pergunta que inicia quer este texto quer a minha entrada nos táxis, apenas uma formalidade, um comprovativo de partilha, um carimbo no silêncio, como que eliminando a possibilidade de aquele homem, apesar de se dirigir para um sítio a pedido de outrém, não ter reparado na nossa presença ali. Assim que o veículo chega ao destino, cuido de me apressar na busca de dinheiro certo, ou o mais certo possível, com uns pozinhos a mais para qualquer eventualidade, e de me despedir cordialmente, tanto nos casos de incomunicabilidade como nos de incontinência comunicativa, já que uns e outros me confrangem, nem sei quais deles mais e menos. No meio, como quase sempre, está a virtude, e quando ela se afirma, que por regra é quando a viagem física acaba antes da dialéctica, o que acontece de longe a longe, fico por mais uns minutos a trocar ideias já não com o motorista, até porque, entretanto, ele teve o cuidado de desligar o motor, mas com o amigo, o parceiro de luta. Essa conversa, ainda que breve reconhecimento de irmandade, é também ela formal, esgota-se na circunstância, como as outras, ou não estivesse o carro longe de nós em poucos segundos, vidas separadas para sempre, quem sabe, num abrir e fechar de porta. Mas tem o condão de me fazer sair bem de um sítio onde entro sempre com desconforto. De mudar o que sinto. E isso define-se numa palavra: viajar. Uma palavra, como um volante, na mão dos taxistas.

DESATAR ATÉ DAR NÓS

As palavras são filhas do silêncio, rompem-no como um novo ser rompe a sua mãe, não sem dor, não sem perda. Cada palavra é um desafio novo, um início, um indício de fim, uma ilusão de identidade, um cão de casota que corre até esticar a corda. O silêncio testemunha essa loucura. É palavra informe, irrasurável. É a razão da fé, a mãe sem truque, o nada na manga de tudo.

FORA-DA-LEI

Lido mal com o desânimo quando se agarra a si mesmo, quando se autoidentifica sem mais, propondo-se assim, inevitável, plantado para crescer no mesmo sítio, ignorando a raiz e os frutos, vivendo errado na linha certa, apagado na luz. É um desânimo teimoso, indisposto a abdicar de si, como se de si fosse o contrário. É um desânimo pendente, um fruto maduro que nem cai nem apodrece, que nos mantém à sombra da árvore, até, quem sabe, ficarmos nós desanimados, caindo então para cima, para sermos fruto com ele, fruto dele. Talvez esse desânimo espere isso mesmo, talvez a questão seja de luta, de mais contra menos, talvez a união seja impossível, talvez alguém tenha de ficar na árvore e alguém cá em baixo, talvez seja essa a lei do desejo. A lei do desânimo.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

VIDA

Quando uma bola de futebol vem ter connosco, a melhor maneira de a dominarmos é apaixonarmo-nos por ela, pelo seu movimento, apreciar a forma como rola, o ritmo, os brilhos, o ruidinho que faz no chão, estudá-la com prazer, sem ansiedade de a ter no pé, de a parar, sem medo de que ela nos bata e salte para outro sítio. É admirar a maravilhosa liberdade em que o tempo e o espaço vão conversando, calados, ou se vão movendo, parados. Assim, a bola chega-nos ao pé e cola, encosta-se a ele frame a frame, mas num continuum, num continuum em que tudo muda para que tudo fique na mesma imperfeição perfeita em que estava. Não me espantaria se os pilotos de aviões fossem instruídos a encarar a pista de modo semelhante. E é, igualmente, nesse sentido que interpreto o conselho para ficarmos parados se virmos um tubarão a aproximar-se de nós: não é o parar que nos salva, se fervemos dentro, mas o parar de encanto, de beleza, de amor e gratidão por um momento único na vida, que se dane se único e último, ou não fossem únicos e últimos todos os momentos, ou não fossem único e último a mesma coisa, como último e primeiro, como princípio e fim. Para mim, viver é isso, envelhecer é isso, é apreciar a barbatana do tubarão, a luz reflectida na textura molhada da sua pele, os movimentos enleantes com que rasga a água em direcção a nós, a forma como cresce a mancha imprecisa do seu corpo à medida que se acerca. As cores, os cheiros, a música da morte, sempre lenta, sempre divisível, até àquilo que nunca experimentámos.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

PROPOSTA

Desculpem lá fazer render mais um bocadinho o peixe de ontem, mas o retorno que tive foi tanto e tão bom que não resisto a partilhar convosco uma ideia que se alojou em mim há já algum tempo e desde então vem fervendo no meu espírito com a brandura aconselhada às ideias mais atrevidas. Tenho conhecido, ao longo da vida e, sobretudo, nos últimos tempos, muita gente com valor (claro que isto é sempre um juízo subjectivo), com ideias e propostas novas para uma sociedade que não está bem nem se recomenda, a maioria das quais radicando naquilo que deveria, pensam elas, ser o mais decisivo factor de emprego dos tempos actuais, já para não dizer de todos os tempos: o altruísmo. Muita desta gente, que não dissocia, portanto, o bem próprio do bem comum, está (paradoxalmente ou talvez não, ou claro que não), ela mesma, desempregada. Ora, se entre muita desta gente há gente com talento nas mais variadas áreas, e se vivemos numa época em que essas mais variadas áreas têm sempre algo ver entre si, como que a dizer-nos, a bold, que toda essa gente tem sempre muito a ver entre si, por que não juntá-la, pô-la a debater ideias e, mais ainda, já que facilmente se constatará que a generalidade dessas ideias são comuns, unir as suas mentes e mãos no desenvolvimento prático daquilo que foram calando, reprimindo, protelando, à espera de que o circuito "público", que o mesmo é dizer circuito dos poderes, ou do poder (governantes, políticos, empresários, banqueiros, patrões dos media, respectivos testas de ferro e mangas de alpaca, dirigentes desportivos, etc.), se cansasse da sua exclusividade ou, depois de esgotar as suas ideias e já não ter mais valores sociais para delapidar, lhes desse um tempinho de antena. Muito corre por aí que, hoje em dia, face aos instrumentos tecnológicos, não há quem se possa queixar de falta de auditórios, de palcos, de palanques, de púlpitos e altares, porque isto é uma democracia generalizada e todos, se quiserem, podem fazer-se ouvir. A falácia deste raciocínio está no facto de que desvaloriza, (in)justamente, o sentido de comunidade, a importância fundamental de meios de convergência, como são, por natureza, os meios de comunicação social, ao mesmo tempo que quem o sustenta e defende não abdica das suas posições dominantes e influentes nesses mesmos meios. Por isso, meus amigos, tenho para mim que, com tanto potencial humano que há cá fora (e quando digo potencial humano sinto um arrepio, não deve ser por acaso), podemos nós próprios fazer, neste caso aqui no Porto, um jornal, um jornal a sério, um jornal das pessoas, das vozes esquecidas, das ideias silenciadas. Pela rua, pela cidade, pelo País. Por nós. Posso já sugerir um nome: Olho da Rua. E termino apelando a jornalistas, gráficos, gestores, médicos, advogados, picheleiros, arquitectos, trolhas, prostitutos, domésticos, estofadores, professores e demais profissionais cansados de fazer aquilo de que não gostam e ansiosos por poder participar em algo que contribua para uma sociedade mais justa e equilibrada: dêem-se a conhecer, proponham-se. Criemos um espaço funcional onde nos possamos encontrar e contar não armas mas argumentos, para ver o que está ao nosso alcance construir, na certeza de que andará sempre entre o nada e o tudo.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

O OLHO DA RUA

Tenho uma loja na Baixa do Porto, uma loja de mobiliário intervencionado. Chama-se Meioconto. Abri-a no fim do passado Verão, pouco depois de ter sido despedido de um jornal em que trabalhei quase vinte anos. Durante esse tempo, confesso, não me preocupei significativamente com o comércio: queria era informar as pessoas, contar-lhes coisas que não soubessem, intervir de forma construtiva na sociedade, contribuir à minha maneira e na escala que me estivesse destinada para democratizar os conhecimentos e os instrumentos individuais e colectivos de análise e de participação cívica, ajudar a cimentar os pilares em que quase todos, no discurso, concordamos que uma sociedade desenvolvida se sustenta. Não me foi possível. Admito que me tenha faltado inteligência, sensibilidade, empenho, capacidade, talento e paciência para contornar os obstáculos com que diariamente deparava na procura de tais propósitos, mas sei bem que, mesmo "viagrando" todas essas qualidades e mais algumas, jamais estaria ao meu alcance perturbar o normal funcionamento da máquina, cada vez mais exclusivamente virada para o comércio. Dentro de mim foi crescendo uma guerra civil entre o homem e o jornalista, que ou redundava numa doença isquémica ou no que acabou por acontecer: o despedimento. Apercebi-me cedo de que era um corpo estranho naquele organismo, mas a eterna crise - a ideia de que a segurança no emprego se sobrepõe a quaisquer veleidades de realização profissional, socialmente encaradas como caprichos de gente que não sabe a sorte que tem, já estava bem enraizada na consciência colectiva ao tempo da minha entrada no mercado de trabalho - manteve-me ali, atado a todas as desilusões relativas ao jornalismo e a mim próprio, ou ao que fiz de mim ou, nos momentos mais autocomplacentes, àquilo em que o jornalismo me tornou: um cobarde. Comi a minha cobardia durante anos a fio, diluindo-a na cobardia dos outros, os meus colegas, concordando nas desculpas que fabricávamos juntos como notícias internas, de sinal oposto às externas na sua intenção apaziguadora, benévola. Conformávamo-nos com a legitimidade de assustar os outros para nos acalmarmos a nós, transformando-nos assim num mero degrau da escadaria repugnante dos media, um degrau de baixo mas um degrau, tão sujo como os outros. Ser ou trabalhar, eis a questão que ganhava nitidez a cada novo dia, na mesma proporção em que a ideia de novo dia perdia nitidez. O ser levava-nos a pensar em reportagens pertinentes, a querer conhecer a sociedade, a fazer "reset" para descobrir sem preconceitos ou intuitos prévios, a contrabalançar as corrupções, as injustiças, o sangue, a tragédia e o horror com as histórias de sucesso, os fenómenos heróicos, os acontecimentos positivos, o fazer das fraquezas forças, o lado encantador da sociedade; o trabalhar levava-nos a escavar o crime, a servir interesses e visões particulares, a reproduzir ou antecipar o que os outros jornais publicavam, a reprimir a nossa vontade de pensar livremente, a discutir com gente despótica que dependia da hieraquia como um peixe depende da água, a perder de vista qualquer horizonte social, a engolir nenúfares porque os sapos já tinham ido todos e a participar numa matança galopante de valores matriciais desse conceito rupestre que é hoje a humanidade. De tempos a tempos ressurgiam-me perguntas antigas, como velas que sopramos e se apagam mas teimam em voltar a acender-se. Do tipo: "Mas se o mundo é tão grande e nele cabem tantas histórias, porque é que as notícias dos jornais, das rádios e das televisões são todas iguais?". Até me envergonhava com a ingenuidade. Hoje orgulho-me por tê-la conservado, por não ter deixado apagar definitivamente essa vela. Se escrevo este texto é porque, depois de um ano de desintoxicação noticiosa, voltei a sentir, dentro de mim, a vela acesa. Corre-me a escrita como sangue em veias desobstruídas de inibidores de paixão. Já não é água ferrugenta, amarelecida e conspurcada, o que liberto da mente e da alma pela torneira dos meus dedos. É com a ingenuidade que tinha quando comecei a escrever que, na minha loja de mobiliário intervencionado, pego em coisas antigas e as transformo em peças novas, únicas, comunicantes e acessíveis. É com essa ingenuidade que continuo a pensar em comércio como uma consequência natural da qualidade do que se produz. Felizmente, já não penso no "leitor", essa entidade abstracta estupidificada até ao limite do irrazoável; agora penso nas pessoas, naqueles que, como eu, gostam de ver respostas para as suas perguntas, gostam de ver respeitada a sua particularidade e integrada a sua voz distinta no coro harmónico que se pretende símbolo e substância de uma sociedade sã. Dou nova vida a valores esquecidos, desprezados pela lei moderna da frieza. Dou via verde aos afectos. Aproximo-os dos objectos, esperando que neles se veja o tanto que podemos fazer por nós. Desde que cheguei à Baixa do Porto, apercebi-me de que muita gente, antes de mim, já havia reciclado as suas vidas, arriscando os seus subsídios de desemprego em empregos por si criados, empregos virados para fora, para os outros, para a cidade e, em particular, para uma zona da cidade que, se não fosse essa gente, estaria em irremediável declínio. Apercebi-me de que essa gente, maioritariamente jovem, faz o que faz não só por amor à vida, mas muito por amor à cidade. Sem ajudas, sem incentivos, sem reconhecimento. Todos lutamos aqui pela nossa cultura, pela nossa identidade, pelo nosso Porto. O Porto das pessoas. Todos estamos fartos de lutar para engordar quem se esqueceu desse mesmo Porto e, por extensão, deste Portugal sem abrigo. Viemos para o olho da rua para olhar pela rua. Não matamos, não insultamos, não roubamos, não ganhamos concursos, apenas nos empenhamos em ser novas soluções para um velho problema. E por isso não estranhamos não ser notícia.

terça-feira, 18 de maio de 2010

SOL LÁ

Nessa tarde a rua não tinha gente, e José procurava reflectir sobre a angústia que o tomava, no porquê de sentir o peito preso quando a calma imperava lá fora e se ouvia o chilrear dos pardais por entre notas de piano que saíam com delicadeza e meiguice das mãos de alguém que só poderia ser uma mulher, sem dúvida jovem, provavelmente bonita e quase de certeza tímida, atravessando o tecido fino dos cortinados de uma janela semiaberta da vizinhança, movidos pela suavidade da brisa e saboreando a luz e o tempero de tudo menos do peito de José, que assim percebeu porque é que nessa tarde a rua não tinha gente.

CRUZ

É curioso que haja quem escreva para sobreviver, na medida em que a escrita é uma forma de subvida. Escrevemos, por um lado, para nos espelharmos, admitindo assim que há uma espécie de relação horizontal, olhos nos olhos, entre o escritor e a escrita. Mas rapidamente verificamos que a relação vertical também existe, na medida em que escrever é ver o mais baixo a que nos deixamos ir. E o espelho também aí nos devolve a imagem oposta: quanto mais baixo nos permitirmos ir, mais alto chegamos.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

DENSO, LOGO HESITO

O ar está com uma consistência estranha, parece gelatina. Pergunto-me se quererá que o coma, mas a verdade é que não o como, como quem não quer saber a verdade.

LER COMO SER

Penso se um dos trunfos da escrita não será o facto de que quem lê está envolvido na leitura e, dentro da dinâmica própria em que a leitura se processa, não tem tempo para reflectir sobre o que vem a seguir. Refiro-me, concretamente, a estes textos que escrevo. À medida que os vou escrevendo, cada uma das palavras impressas me ecoa na cabeça e, como qualquer eco, traz uma aparência indefinida, dividida ou multiplicada, não sei, mas em que são perceptíveis várias derivações, relações profícuas, como quando se atira uma pedra a um rio e os círculos nascem uns dos outros, trementes, nunca parados, mas suficientemente nítidos para os podermos cristalizar na memória e, depois, se for caso disso, fazermos uso deles. Mais ou menos assim é, aliás, a vida: nunca pára, não dá para apanharmos verdadeiramente nada a não ser essas impressões e, depois, se for caso disso, fazermos uso delas. Será a vida um eco? Não sei. Mas também não era por aí que eu ia. Dizia eu que as palavras escritas, ecoando-me na cabeça, trazem-me à superfície da consciência palavras da sua família, ou etimológica ou que com elas rimem, não sei, tal é também a indefinição do critério que preside a essas relações. Sei que, por isso, a minha tendência é, muitas vezes, agarrá-las, como quem ampara estrelas cadentes do seu próprio céu, e acolhê-las no mesmo sítio onde ficaram as outras, ou seja, no papel (definição romântica de ecrã de computador). Estabeleço, eu próprio, assim, outras relações, ecos de relações, ecos de ecos. Acho que quem se dedicar ao estudo disto pode resgatar para a sua ciência o nome de ecologia. Faz mais sentido aí do que onde está hoje. Mas voltemos à questão: quem me lê não tem tempo para se aperceber dos ecos da leitura. Ou melhor, aperceber-se até se apercebe, mas lê logo a seguir aquilo de que se poderia ter lembrado, ou outra coisa. Provavelmente, perde um eco mas ganha um eco de um eco perdido. Donde, e agora recuperando a ideia inicial, talvez um dos trunfos da escrita seja fazer o leitor ver os ecos da vida a passarem-lhe pelos olhos sem que tenha tempo nem vontade de os apanhar. Os ecos são as oportunidades da vida. E, como tudo na vida, fazem eco.

O MEU BOCADO

Muitas vezes tive a tentação de me juntar a alguém com sucesso, alguém que me pudesse atrelar, por piedade ou, de preferência, por me reconhecer valor, e levar-me aonde eu sozinho nunca conseguiria chegar. Mas algo, nessas alturas, me dizia que, uma vez cometido esse acto de compaixão, eu ficaria com uma dívida de gratidão para com a pessoa em causa e moralmente obrigado a não a deixar ficar mal, o que transportaria o padrão de sucesso da operação para ela e não para mim, ou seja, todo o meu percurso a partir daí se mediria pelos passos do meu salvador e não pelos meus. Eu deixaria de ir a reboque da minha exigência e passaria a ir a reboque da dele, ou até, na pior das hipóteses, a reboque da minha exigência projectada nele, que seria igual à minha exigência multiplicada pelas vezes que o achava a ele melhor do que eu. Sim, porque só se justificava aceitar a sua oportunidade se o achasse melhor do que eu. A minha exigência nunca me deixaria pensar: ok, o projecto é dele, por isso já não preciso de me cobrar tanto. Pelo contrário: nesse caso, haveria uma factura dois-em-um para um eventual sucesso um-em-dois. Nada disto significa individualismo, não se confunda o que digo. Significa, sim, consciência da dimensão do indivíduo, nos seus deveres para consigo e para com os outros. Antes de mais, a nossa luta (talvez fosse melhor dizer a minha, por razões de coerência) deve ser para connosco, no sentido de nos tornarmos um projecto de sucesso para consumo interno, de nos construirmos passo nosso a passo nosso, sabendo que podemos infligir os golpes que quisermos no silêncio que ele, como um desenho animado, se reconstitui sempre, volta sempre à forma inicial e última, enquanto nós crescemos, mudamos e nos moldamos golpe a golpe. Já não sei quem o escreveu (aliás, veio esta semana citado num jornal desportivo), mas "saber mais é ser mais", e (como diria La Palisse, que também poderia ter escrito a frase anterior) só se é se se for, devendo este "for" ser lido na sua dupla acepção, ontológica (ser) e accional (ir). Ir sendo ou ser indo, portanto. Sem rebocar e sem ser rebocado. A experiência, a minha, claro, faz-me dar um toque pessoal a uma célebre lição moral de uma das fábulas de La Fontaine: "Guardado está o rebocado para quem o há-de comer". Não vão por mim.

terça-feira, 11 de maio de 2010

BOLAS

Três bolas de futebol numa varanda compreendem melhor a noite do que eu. Eu vejo-as através do vidro, elas vivem-na. São planetas pousados, cansados de levar pontapés. Eu penso nestas coisas, penso em palavras para descrever o que vejo, esquecendo-me de que enquanto penso não vejo. Quando me lembro, deixo de pensar, vejo apenas. Mas ao primeiro sobressalto emotivo já estou de novo no planeta das palavras, tentando traduzir verbalmente o que senti.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

E PUR SI MUOVE

Hoje entendo a expressão "parar é morrer" num sentido distinto daquele em que a entendia quando comecei a escrever esta frase. Podia agora parar por aqui que a dita (ou escrita) frase não morreria. Provavelmente viveria até mais e melhor do que com o seguimento que lhe vou dar, mas apetece-me discorrer sobre o assunto. É como quando uma pessoa come mais do que o suficiente porque lhe está a dar prazer. Ora, dizia (ou escrevia) eu que entendo a expressão "parar é morrer" de modo diferente daquele em que a entendia quando comecei a escrever a primeira frase deste texto - e agora acrescento que a última também. A vida é toda ela dinâmica, estejamos nós parados (que nunca estamos) ou em plena actividade. Mas, como somos materialistas, interpretamos as coisas sentidas, ditas, escritas e feitas no seu significado mais material. "Parar é morrer" torna-se, então, igual a dizer que quem não trabalha é um inútil, que quem contempla "mata" tempo. Por isso, há que andar, há que sair do sítio, fugir para a frente. Há que fazer coisas paradas, senão param-nos elas a nós, que isto é matar ou morrer. Cristalizamos imagens, sons, formas e tudo o mais. Chegamos até à suprema ironia (é quase sadismo) de fazer coisas paradas que nos ajudam a andar. Sapatos, por exemplo. Tudo o que construímos é parado: mesmo os meios de transporte, do triciclo ao foguetão. Às vezes concebemos compostos que, dentro do nosso filtro perceptivo, se mostram fluídos, em movimento, mas as substâncias que lhes conferem essa propriedade já existiam, já fluíam, já se moviam. Pensemos agora nalguns dos trabalhos ditos mais criativos. Pensemos nas artes plásticas, na música, na literatura. Um pintor é-o, reconhecidamente, quando expõe um quadro. Uma banda consagra-se quando edita um disco. Um escritor quando publica um livro. Ou seja, estamos vivos quando matamos coisas. Porque é com coisas mortas que as pessoas vivas vivem e, nesse sentido, ao matarmo-las (às coisas, não às pessoas) estamos a fazer com que outras pessoas possam viver. Em tudo isto, claro, o dinheiro exerce um papel fundamental. Se eu pago para ir a uma exposição, legitimo essa condição de ser vivo, mesmo contemplando. Se eu compro um livro ou um disco a mesma coisa, até subo na consideração dos meus circundantes porque posso assim falar de matérias "não dadas", em duplo sentido (a pirataria, nesse aspecto, é claramente um mal que veio por bem). Já se eu paro sobre um rochedo a olhar o rio, sou um mandrião. Ninguém me convence, aliás, de que boa parte da popularidade que a pesca de cana ainda tem não se explica pelo facto de proporcionar, com a busca de alimento, uma excelente desculpa para as pessoas pararem sem que as acusem de morrer. Estão a fazer alguma coisa (ou a matar - no caso, peixe). Por isso, e sem querer fazer deste texto um manifesto, uma apologia ou uma posição de princípio, dando-lhe uma importância que ele não tem, até porque o meu entendimento sobre ele já não é exactamente o mesmo de quando o escrevi e não posso, assim, subscrevê-lo na íntegra, sugiro, para o terminar e assumi-lo como produzido, completo, pronto a servir (e desse modo furtar-me, eu próprio, às acusações de calaceiro, morto-vivo ou coisa que o valha), a admissão de uma expressão na frequência de vibração oposta à inicialmente citada ("parar é morrer"), e que seria "mover-se é matar". Dito (ou escrito) isto, páro. E, curiosamente, para muitos dos meus potenciais leitores, é agora que começo a viver.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

DE UMA CONTA A OUTRA

As suas contas cada um que as carregue, mas há contas sem ponta por onde se lhes pegue. Se eu pudesse pagá-las em simpatia, pois nada me importaria, só que além de eu saber que ninguém a aceitaria, sei também que não ma devolveria. Faria dela refém, e com ela ficaria, quem de mim não recebesse, a mal ou a bem, tudo quanto lhe cabia. Eu, por mais voltas que desse, só novamente a veria quando me resolvesse a pôr as contas em dia. Mas se, de repente, me saísse a lotaria, toda aquela gente me perdoaria a dívida pendente, esperando que tal simpatia, por ser de categoria, me enchesse de gratidão, a ponto de abrir a mão e, literalmente, tornar a conta corrente. Então, se eu aumentasse a quantia e, por juros de não-cobrança, lhes desse mais do que devia, até mostrar cagança poderia, que à santidade o meu bom nome subiria. Na verdade, assim é a nossa Bolsa de Valores: uma valsa de cobrados e cobradores. Quem melhor a dança é quem não tem amores para além da finança. É uma fidelidade cómica, mas dela vive o fiel da balança económica. A nós, pecadores, não nos resta outra saída senão amar a balança da vida, esperando que seja devida a frase que desde criança por todos nós é ouvida: 'Enquanto há vida, há esperança!'.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

OLHOS PARA A ÁGUA

Tento ver o mundo com os teus olhos, mas nem sempre me deixas, ou nem sempre me deixo, porque a luz cansa e eu tenho de os fechar, os meus, claro, para que fique escuro. Tu não, tu olhas sempre por mim. Sei, no entanto, que quando te olho te olho nos olhos, que mergulho neles, que me meto contigo e te atiro água, que vou na corrente. Perco-me de vista e não sinto medo, pois sei que o infinito é a dimensão de tudo o que fazemos. O meu corpo és tu, a olho nu.

terça-feira, 4 de maio de 2010

A VISITA

Ontem visitou-me uma personagem minha. Não digo qual foi. Agradeceu-me o facto de a ter inventado. Disse que a vida lhe corre. Eu, claro, fiquei contente, porque gosto sempre de que os meus filhos se sintam bem, embora muita gente pense que os escritores inventam personagens para neles aliviarem a sua carga de infelicidade. Mas ele não vinha a isso: o motivo da inesperada visita prendia-se com os problemas que a mulher estava a atravessar. Problemas de anonimato. Eu respondi-lhe que nada podia fazer para o ajudar, já que fora ele, e não eu, o inventor da sua mulher. Percebi então, na reacção dele, a real natureza do agradecimento: era graxa. Vi nos seus olhos como o fogo se ateava quando me respondeu que se eu era responsável por ele era também responsável pelas suas responsabilidades. 'Mas não vês que há uma parede entre mim e a tua mulher?', invoquei eu, dando-me à simpatia de lhe explicar que, em qualquer estafeta, quem recebe o testemunho tem de fazer a volta sozinho. Era, além disso, uma forma de lhe mostrar que o problema do anonimato só podia ser resolvido pela mulher, não por ele. Propus-lhe que lhe fizesse, a ela, a mesma pergunta: 'Mas não vês que há uma parede entre mim e o teu anonimato?'. Ele retorquiu que eu não conhecia a sua mulher. E eu, claro, tentei rematar ali a questão: 'Ora vês como eu não posso fazer nada?'. Não chegou. Disse-me para a reputar do que quisesse: 'Podes chamar-lhe puta, vaca, galdéria... Ela não se importa. Tens é de a inventar'. A minha paciência estava a esfumar-se, mesmo tratando-se ele, e não ela, essa puta, vaca, galdéria ou lá o que ela queria que eu lhe chamasse, de uma personagem minha, e eu vejo sempre as minhas personagens como meus filhos, o que não é igual a ver as personagens deles como meus netos. 'Mais uma vez acabas de dar a resposta. Ouve-te: dizes que eu tenho de a inventar. Pois se ela já foi inventada, e por ti!'. Pela febre com que os seus olhos saltaram dos buracos, percebi que também a paciência dele já voara para longe, e pensei, embora o clima não fosse propício a divagações poéticas, se não teriam ido ambas ver o pôr-do-sol, à espera de que quando nós resolvêssemos a nossa inconveniente diatribe ainda pudéssemos juntar-nos a elas e contemplar o momento mágico em que a luz se apaga no horizonte e todas as fronteiras se anulam. 'É isso!', gritei, já a minha personagem se atirava ao meu pescoço. 'Anda comigo lá fora, vamos ter com as nossas paciências à beira-mar!'. Ele parou, perplexo como um boi a contemplar o vazio. Sem resposta, deixou-se arrastar. O seu silêncio era de 'pause', de banho-maria, de volto já. Mas não deixava de ser um voto de confiança, um derradeiro sopro de fé no criador. Chegados à praia, vimos as nossas paciências na água, nadando em frente, como setas apontadas ao leito do último raio, ao ralo da última ideia. Fomo-las seguindo com os olhos, eu e ele, lado a lado e nos antípodas um do outro, como tudo à nossa volta, como tudo à volta de tudo, até ao fim. E foi assim.

DÚVIDA METÓDICA

Há quem escreva quando a vida lhe pesa e viva quando a escrita o despreza. Eu não tenho a certeza, mas acho que vivo e escrevo à mesma mesa.