sexta-feira, 30 de julho de 2010

O SOFÁ DE PEDRA

A história que vos vou contar podia sair-me das mãos numa rajada, mas eu não nasci para ir directo aos assuntos. Percebi isso quando perdi a virgindade. Foi estranho. Os meus amigos tinham-me pressionado tanto a invadir a minha namorada que, na hora h, parecia que o meu pénis ia às finanças. Claro que ejaculei precocemente. O que vale é que não culpei o acto em si, culpei-o em mim, isto é, compreendi que sem sol não se faz praia, que cada prazer pede o seu clima. Com essa namorada, porém, o destino estava escrito. Como Deus, quando fecha uma porta, abre uma janela, o mesmo destino quis que, antes de conhecer a minha terceira namorada (e não a segunda porque à segunda nem as mamas lhe apalpei, apesar de ter andado dois meses com ela), eu descobrisse um sítio mágico, hoje dir-se-ia um spot, numa zona rochosa da praia de Cabedelo, para lá do Hotel Casa Branca, quem vem do Porto. Era um calhau talhado pela bravura do mar em forma de sofá ou chaise longue, um presente romântico do grande arquitecto para a minha pequena pessoa, como a lembrar-me de que nem tudo estava perdido. Reconheci logo ali um potencial extraordinário. E, assim que pude, numa noite cravejada de estrelas, levei lá a rapariga que, entretanto, me entrara pelos olhos. A conversa, a brisa costeira, a aura de altar impossível, com um véu lunar a sair-nos dos pés, na incerteza da água, para um horizonte também ele indefinido, mistificaram o beijo que acabaríamos por dar, certos de que haveria de ser o primeiro de muitos, como foi, e certos de que haveríamos de ser os últimos um do outro, como não fomos, nem sequer naquele sofá. Se é verdade que os casos de amor deixam sempre marca, a rocha ergonómica nunca se viu beliscada - também, quem é que ia beliscar uma rocha… - na sua infalibilidade como acendalha da mais crepitante das ilusões. Pelo tempo fora, tive ali a boca de cena perfeita para o ritual iniciático da paixão, uma espécie de zona (pouco) franca entre o divã e o confessionário, onde me encontrava sempre com cada nova mais-que-tudo, como num casting mútuo, de olhos apontados ao filme mais estrelado, a passar desde o princípio das noites na tela infinita. Um dia, ao cabo de muitos anos, dei-me conta de que a marginal de Gaia estava a ser substancialmente alterada, para que o usufruto de toda a linha de praia ganhasse qualidade, quer na perspectiva de quem passa, de carro ou a pé, pois a proposta era melhorar as estradas e construir um percurso pedonal de madeira até Espinho, quer na de quem fica, uma vez que iria ser ampliada a oferta de bares e esplanadas. Eu, claro que afastei essas promessas como quem abre as cortinas do quarto à espera de que o dia não esteja chuvoso e fui, disparado, procurar o calhau, mas, depois de umas voltas para trás e para a frente, não vislumbrei sequer o meu ponto de referência, que era uma curva, uma curva que já era, pelos vistos. Fiz uma espécie de varrimento emocional, que é como quem diz um apelo à memória afectiva para vestir a pele de detective, e corri as áreas rochosas, saltando de pedra em pedra, sem, contudo, descortinar o paradeiro do sofá. Se, por um lado, se me afigurava impossível, criminoso até, alguém ter removido dali o ex-libris costeiro do Grande Porto, por outro eu era obrigado a reconhecer que mais ninguém, além de mim, lhe atribuía esse estatuto, donde a minha frustração tinha uma raiz essencialmente egoísta. Voltei lá depois disso, em ocasiões dispersas, só para confirmar o desaparecimento, e ainda hoje, devo confessar, há um cantinho de mim que não se dá por convencido. Mas é mera teimosia. Afinal, a mulher com quem vivo, o amor da minha vida, nunca se sentou naquele sofá. Foi a primeira e única, como se, fechando a porta dos enganos, Deus me tivesse aberto, enfim, a janela da verdade. Por isso, acho que está na hora de pôr uma pedra sobre o assunto.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O CRIADOR DE PÁSSAROS

Hoje entrou uma gaivota na minha loja. Era escura, como se tivesse saído de uma chaminé, e tinha o bico preto. Um senhor que vinha a passar, também ele escuro, talvez indiano ou turco, não sei, é que me explicou que as gaivotas nascem assim e só uns meses mais tarde, como a luz que emerge das trevas, se cobrem de branco e amarelecem o bico, naquilo que mais parece um disfarce, uma candura enganosa, pouco condizente com os seus dejectos fecais, largados lá do alto, quais mísseis, para corroer as superfícies edificadas do mundo. À minha mercê, e logo à minha, ou não fosse eu um Cristo da fisiologia voadora, estava um tenro exemplar de gaivota, num precário equilíbrio de patas, mas aparentemente sem medo, curioso até, revelando vontade de fazer uma vistoria à loja e observar com detalhe cada um dos objectos expostos. O meu primeiro impulso foi olhá-la, certificar-me de que nada de errado, para além do óbvio, que era uma gaivota entrar, com ares de cliente, numa loja, lhe teria acontecido, tipo uma queda, uma luta, um ferimento. Depois decidi dar-lhe o seu tempo, deixá-la estar, até que, presenciando o crescer do seu conforto, optei por ir ao café em frente comprar um pão e seduzi-la com migalhas para junto da porta. Sem gestos bruscos, debicou uma e deitou-a fora, esclarecendo-me sobre a sua falta de fome. Na rua, alguns transeuntes iam parando, pelo insólito de uma montra-ninho. A vizinha do lado, tirada dos seus vagares, prontificou-se a resolver o caso e, assertivamente, mas com a necessária delicadeza, pôs a gaivota fora da loja. Como pegar-lhe e devolvê-la à mãe passou, então, a ser o problema. Alguém ali se lembrou de um caixote. Veio uma caixa de cartão apanhada no lixo. Assumia protagonismo a mais desastrada falta de jeito quando uma mão vinda não se sabe de onde ergueu majestosamente a ave e, contemplando os presentes com um olhar sagaz, explicou: “Fui criador de pássaros”. Eu já tinha visto a cena do médico que aparece exactamente quando um indivíduo cai no chão, acometido por um problema cardíaco, ou algo assim, mas o súbito surgimento daquele criador de pássaros, como um relâmpago vindo de todas as incapacidades ali presentes, afigurou-se-me extraordinário. Talvez por se ter apercebido disso, ou então por outra qualquer razão, quem sabe até por uma razão derivada da que levou a gaivota a entrar na minha loja, o rapaz escolheu os meus olhos como alvo da intrepidez, quase loucura, que enchia os seus. “Para lhe pegares, é assim, por trás”. Disse isto e ia-me passar o bicho, que gritava e tentava à força toda espetar-lhe uma bicada, arrancar-lhe a ponta do nariz. Eu, para trás, dei mas foi um salto. O criador de pássaros não me disse mais nada. Desandou, rua fora, com a gaivota nas mãos. Eu segui-o e vi que, minutos depois, já estava ela no seu habitat, provavelmente pondo a mãe ao corrente da aventura. Voltei para a loja constrangido, como quem acabou de ser ensinado mas não aprendeu a lição, e questionei-me sobre o sentido que faria o recém-terminado episódio, se é que fazia algum ou estava destinado a fazer. Mais tarde, na varanda de casa, interpelando a noite, ouvi um ruído de gaivota. E, como se uma luz alva tingisse o cinzento das minhas penas, assolou-me a ideia de que os sentimentos escuros não são mais do que pequenas águias que encalham no nosso íntimo e dele não saem enquanto não os conhecermos o suficiente para sabermos como e por onde lhes pegar, aonde querem ir e como os ajudar. Aprendê-lo, desprendê-los, deixa a mãe deles descansada e poupa-nos à sua visita. Bem hajas, criador de pássaros.

INTEGRAR É PRECISO

Imagine-se numa discoteca em que, ao soar de uma música conhecida, toda a gente converge para a pista. Você, por não estar seguro dos seus dotes rítmicos, fica a ver. Dentro de si, a vontade de participar no movimento colectivo debate-se com a falta de autoconfiança. Põe a hipótese de o melhor ser sair dali, mas, depois de antever a violência de se reconhecer como um derrotado, como um incapaz, opta por dar a ideia de que se sente bem assim, parado, apenas a olhar. Apoia-se, entretanto, na bebida e no tabaco - e, cada vez menos dono de si, questiona-se também sobre se estas ‘muletas’ não prejudicarão a imagem que está a transmitir aos outros, se não o tornarão ainda mais fraco aos olhos do todo, de que não sente fazer parte. A páginas tantas, junto a uma pessoa sua amiga que se aproxima e pergunta por que não dança, você assume não conhecer o léxico dos passos, não sentir o ritmo, não acreditar nas suas capacidades, enfim, tudo somado, confessa-lhe que é a pessoa errada no lugar errado.
Agora imagine que o lugar errado é o lugar, ponto. Ou seja, não há outro. Você tem de aprender a dançar. Rendido à inevitabilidade, já depois de aceite o facto de que prolongar a recusa só lhe vai causar mais sofrimento, percebe que, para se integrar, necessita de superar os seus medos. Aí, a sua amiga ajuda-o a relativizar o peso dos outros, da massa dançante, dizendo que cada um está entregue a si mesmo, que se alguém olhar para si e gozar consigo, com o seu processo de aprendizagem, é porque esse alguém não usa da verdade, ele próprio não está seguro de si e assume a estratégia mais fácil e mais cobarde para se legitimar ali, que é procurar sacudir para outra pessoa a chacota de que teme ser alvo. Você, contudo, nesse momento, acha mais possível a mimese do que a expressão individual - está nos antípodas da liberdade e só quer passar despercebido. A música, por outro lado, não bate cá dentro, não faz eco no seu corpo, não o aquece, só o petrifica. A sua amiga passa por si, pisca-lhe o olho e diz-lhe para sentir, mesmo parado. Diz-lhe para ver como um direito o que se lhe afigura como um dever. Diz-lhe que numa piscina há os que nadam impecavelmente, os que disparatam, os que brincam, os que chapinam, os que dão mergulhos, e todos se divertem. É nisto que as metáforas são úteis. Você reflecte e faz um gesto tonto. Ri-se. Depois faz outro. Ou seja, assume o ridículo, é-lhe mais fácil, para início. Está na margem oposta à do pretendido, mas está porque quer, não porque almejou a outra e, dando um passo maior do que as pernas, caiu ao rio. Pelo menos, sente, já está lá, no quadro grande, no todo. Pouco a pouco, vai pondo um pé na água, outro, molha a perna até ao joelho, depois demove-se, com o frio e a corrente, espera um bocado, volta a fazer o mesmo, depois as coxas, ainda sentado na margem, e alguma coisa, que já não alguém, que já não a amiga mas alguma coisa sua, uma voz interna, lhe vai dizendo que o processo não é assim tão mau, até provoca sensações curiosas, agradáveis. Paralelamente, a ideia de chegar ao outro lado vai perdendo importância, embora com uma lentidão que retira nitidez a uma consciencialização sua das pequenas vitórias que grão a grão, como numa ampulheta que se vira ao contrário, está a acumular. Mesmo que demore muito a sentir a utilidade deste trabalho pessoal para o todo, já sente a utilidade pessoal de todo este trabalho, e isso é fundamental. Tem aí, de resto, um sinal claro de que o objectivo tende a abstractizar-se à medida que o processo se concretiza, ou seja, de que ele existe apenas para desaparecer, qual miragem no deserto, e isso, por paradoxal que pareça, não só não o demove como o motiva, fá-lo aumentar a capacidade de saborear as coisas, os momentos, cada vez com mais detalhe, dando-lhe a ideia de que a sua sensibilidade se subdivide, se reproduz, se multiplica. O eu que fiscalizava dilui-se pouco a pouco no eu que se mexe e, de um modo cada vez menos racionalizado, entram ambos no ritmo, dançando juntos. O primeiro passo fluído da dança é o primeiro passo fluído da integração, o eu e o eu já só um, olhando o tu olhos nos olhos, com apetite. A partir de então, como numa penetração sexual, tudo se humedece e abre, espantosamente. Parece que o mundo é seu, mas é e não é, ou melhor, é tão seu como do Outro. O orgulho da autosuperação leva-o a exibir-se, a exagerar na presunção de domínio, a abusar do poder. A sua amiga aproxima-se e, gentilmente, pontua-o, lembrando-lhe que uma guerra ganha tem muitas batalhas perdidas. A noite desliza consigo e, música a música, corpo a corpo, você vai percebendo que um novo dia está para nascer. Seja bem vindo ou bem regressado.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

MUNDO FANTASMA

Quando eu era pequeno, diziam-me para não acreditar em fantasmas, que eles não existiam. Hoje dizem-me o contrário: há-os por todo o lado. Os últimos de que ouvi falar, devido ao novo filme de Polanski, em estreia nas salas portuguesas, foram os escritores-fantasmas, gente que escreve por encomenda e vende a própria autoria, ou seja, permite que o cliente assine o trabalho, como se fosse seu. Eu acho que isto merece uma reflexãozinha, convocando a sociedade em todas as suas frentes. É que talvez estejamos a abusar da paciência de Platão e a esticar demasiado a corda que ele nos deixou para podermos aceder ao nosso estado puro. A metáfora de sermos sombras de nós próprios é isso mesmo, uma metáfora. Serve para desenvolvermos as virtudes que temos e perseguir a utopia de nos tornarmos iguais ao nosso melhor. Não serve, ou não devia servir, para comprarmos sombras que façam de nós sombras de sombras, para desenvolvermos os defeitos que temos e fincar pé na distopia de nos tornarmos parecidos com o nosso melhor. A verdade é que, assim, a mentira alastra. Os mistérios (como, aliás, os ministérios, ou não se falasse há muito de governos-sombras e coisas do género) tornam-se cada vez mais densos. As sociedades, em lugar de se desnudarem, ganham camadas. A floresta, que não a verde, escurece. E todos nós sentimos razões para voltar a ser crianças com medo do escuro. O que é, neste cenário, a informação? Vejamos, sem qualquer tomada de partido, ou seja, apenas a título de exemplo, o caso dos prisioneiros políticos de Cuba. Não poderão ser eles homens pagos para dizer o que dizem, mártires-fantasmas? Que certificados temos? E, se os houver, não poderão ser certificados-fantasmas? E assim sucessivamente, até um infinito lodoso, até esgotos nunca dantes navegados? Eu não me comprazo na profecia da conspiração, não contem comigo para gastar energias na espiral da desgraça, mas preocupa-me a falta de visão global com que estes actos-sombra, alegadamente inocentes na sua estrita dimensão profissional, são cometidos. Um escritor-fantasma deve ter noção de que, ao escrever a autobiografia de alguém que, podendo ser analfabeto, vai mentir ao seu público, se torna também um mentiroso-fantasma. Ou seja, não pode ficar só com a parte boa e dizer que o que fez foi por trabalho. O dinheiro que ganha na escrita-fantasma é pelo menos equivalente à credibilidade que perde na mentira-fantasma. Devia ser assim. Mas não é. Estamos numa fase do mundo em que, para o bem, todos nos dizemos contribuintes, mesmo que seja precisa alguma benevolência, ou a alusão ao efeito-borboleta, para atribuir uma quota-parte de responsabilidade nesse bem à actividade que exercemos. Para o mal, nenhum de nós ajudou, nenhum de nós sequer viu, de tão comprometido que estava com o com o seu labor inóquo, no seu departamentozinho estanque. Isto, esta forma de pensar, contemplando o benefício próprio apenas dentro da sua dimensão mais mesquinha, mais pequena, mais egocêntrica, e desprezando a evidência da globalidade do ser, do cordão umbilical que nos une a todos, está a levar a sociedade para um patamar de irresponsabilidade assustador. A própria ciência, no seu afã evolutivo, parece às vezes caminhar sozinha, obcecada consigo mesma, esquecendo a complexidade do mundo em que vive e o facto de as descobertas só se poderem considerar benéficas após a avaliação do seu aproveitamento. Aliás, os próprios cientistas, na sua qualidade de homens como os outros, estão à mercê de convites para se converterem em cientistas-fantasmas, em cientistas-sombras. Temos ouvido falar, com insistência, do neuronegócio, e isso, evocando Huxley, prefigura um arrepiante mundo novo. Não se infira daqui que eu me oponho ao desenvolvimento científico. Bem pelo contrário, toda a observação me parece imprescindível, essencial. Mas, tanto em termos de princípio como de método e objectivo, ela não deve descartar, como pano de fundo, a conexão entre sujeito, objecto, domínio específico e contexto global. Se os cientistas idóneos, responsáveis e dignos, que serão muitos, estou convicto, não o fizerem, cedendo a uma pressão crescente de interesses também eles cada vez mais sombras, tornar-se-ão responsáveis, tanto como quem os suborna (e ainda que queiram, em prol da ciência, varrer para debaixo do tapete a consciencialização desse suborno), pelas consequências nefastas que o planeta venha a sofrer. O problema que se põe aqui, no fundo, é o da consagração de uma coisa foneticamente próxima da meritocracia: uma mentirocracia. Um mundo-fantasma, com homens-fantasmas (assinale-se, a propósito, o visionarismo de Sérgio Godinho), leis-fantasmas, governos-fantasmas, empresas-fantasmas, dinheiro-fantasma, instituições-fantasmas e valores-fantasmas, onde a luta já não é por um lugar ao sol, mas por um lugar à sombra.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

TARDINHA

A tarde calma tem um encanto infinito. Transforma-se em noite, como todas as tardes, mas dentro de mim mantém-se tarde e arde num brando lume sem fim. Olhem para a de hoje, a pousar o seu manto etéreo com arejados requebros de medusa. Ela insinua-se e a sua chama chama-me como se a cada segundo se fosse apagar, mas eu, que já a conheço, porque a trago na alma desde a primeira tarde, sei que isto é uma dança como a que mantenho com o tempo desde que o tempo perde tempo comigo.

DIAS ASSIM

O médico ausculta-me e percebe que a resposta, no meu coração, se antecipa à pergunta. É coisa de momento, passa. Tenho disto quando me sinto em falta, vazio, embora às vezes me sinta vazio e não em falta. O vazio, como a verdade, depende de mim, o que pode ser um descanso ou uma fadiga, um sonho ou um pesadelo. Se o meu vazio deixa que o vazio de tudo pouse sobre ele, então a pergunta pode ser-me feita como veio ao mundo, nua. Se o meu vazio desespera por uma veste, então a resposta vomita-se - vomita-o. Nestes dias, nestas horas, não me enviem coisas belas. São um desperdício.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

FIM DA LINHA

Será que os pássaros vivem a crise? Será que há menos gente a dar-lhes migalhas nos jardins? E todos os outros animais? Será que partilham as angústias do Homem sobre o estado do mundo? Será que sofrem de forma indirecta? Pelo que me é dado ver, não. A generalidade dos animais ditos não racionais habituou-se a viver em liberdade, coisa de que o Homem, no exercício da razão, quis prescindir. Cioso da sua mais-valia, despediu-se da cadeia de ADN global para se fazer a uma vida destacada, para escrever uma história acima do universo, mero contexto, paisagem, folha lisa. Capítulo após capítulo, encontra-se hoje perante a realidade irrefutável de ter criado um Deus à sua imagem, chamado dinheiro, Deus esse que, cada vez menos, por ser filho de um Homem desligado, de um recorte físico do infinito, está em todo o lado. Ora, se a ideia de que a salvação e a felicidade se baseiam na posse é hoje do domínio da lógica, do código subjacente à vida da espécie, há então que lutar com unhas e dentes por esse Deus. A este raciocínio interpõe-se, no entanto, um problema: o que fazer com as pessoas que se sentem felizes sem possuir ou querer possuir a dita felicidade? Pois excomungá-las, atirá-las para outra espécie, uma espécie inventada, uma espécie nova, que, tendo em conta a teoria evolucionista, quem sabe justificaria a reciclagem do termo super-homem. Hum…, não, não faria sentido evocar anacronicamente uma estrutura mítica cuja falência teve, aliás, expressão retumbante na realidade. Fosse ele um pássaro, como admitia a célebre pergunta dos homens que o viam pela primeira vez a rasgar os céus, e ainda andaria aí, imune à crise, mesmo que não a salvar pessoas, mesmo que não a aliar-se ou a substituir-se ao Deus dinheiro. Mas, enfim, talvez lhe assentasse bem a designação de supra-homem, um “supra” ligado à superação, à sublimação, à transcendência - uma transcendência inclusiva, porém, não uma transcendência irresponsavelmente mística, magicamente religiosa. Cumprida essa limpeza, deixada a nova espécie ao sabor dos pássaros, aprendendo a voar, a ser livre, o Homem poderia retomar a escrita da sua obra-prima, do seu grandiloquente livro técnico, sem romance, com menos personagens e mais Deus disponível para cada uma delas, e tirando proveito de, através do erro, ter aprendido uma lição extraordinária, imprescindível ao desejado final feliz: reprodução, jamais.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A SOLO

Eu, com o sol, dou à sola. É melhor, porque a mulher, com o sol, sola, e eu não me consolo com o seu solo, pois se ele me assola a trave mestra eu ainda me isolo e desolo a orquestra.

terça-feira, 6 de julho de 2010

DE MÃO EM NÃO

Um homem sentado no passeio estende-me a mão, e eu, lendo um cartão que ele, como se fosse a outra mão, pousara sobre os joelhos, dei-lhe dinheiro. O cartão dizia: vivo na rua e não tenho o que comer. Dentro de mim, parecia que aquelas duas mãos haviam entrado para um debate político em linguagem de surdos: uma acenava-me com o sofrimento do homem, a sua necessidade; a outra procurava convencer-me de que, ao dar-lhe dinheiro, não o estava a ajudar a levantar-se. Pelo que já revelei, deduz-se que o primeiro argumento me emocionou mais, mas não é verdade: o debate das duas mãos era anterior àquele momento e continuou para lá dele. Agora mesmo ele mantém-se vivo, e não sei até se morrerá antes de mim. Mas, na dúvida, dei-lhe dinheiro. Há quem, na dúvida, não dê. Eu gosto de confiar nas pessoas até prova em contrário. Confiar não só no que me contam, mas confiar também na sua bondade. Para tal, porém, ajuda-me vê-las, tê-las à frente. Percebo isso hoje muito mais nitidamente, com a globalização das relações. Esta manhã, por exemplo, ligaram-me do Japão. Era um homem bem educado, embora a pender um bocadinho para o autómato, à imagem do que acontece um pouco com os operadores das redes telefónicas aqui em Portugal e julgo que por todo o mundo, e paulatinamente foi-me encaminhando para o que queria: saber se eu estava interessado em investir na limpeza da costa norte-americana, vítima de um dos maiores desastres ambientais de que há memória. A vantagem que eu tinha, segundo ele, era que, entrando com 60 dólares, sairia garantidamente com pelo menos 90, e o meu nome ficaria associado a um acto de nobreza planetária. O processo era esquisito, a qualidade da chamada e o problema da língua também não ajudaram, claro, mas, no essencial do que eu pude entender, havia uma empresa, altamente reconhecida pela Casa Branca, destinada a angariar fundos para combater a maré negra. Escusado será dizer que só este programa, enunciado assim, me fez lembrar o presidente Obama e o seu drama pessoal, que hoje não é um drama e sim um motivo de orgulho mas que ao longo da vida foi, se não um drama, pelo menos uma fonte de reflexões tensas, umas gratificantes e outras corrosivas, ou não houvesse ainda muitos americanos a dar-se chapadas para tentarem perceber como é que a maré negra chegou à Casa Branca, como é que um sujeito chamado Barack Obama rompeu com uma História, relativamente curta, tudo bem, mas imaculada na sua alvura. Para que a tal empresa tivesse êxito em tão humanitário projecto, era necessário que eu disponibilizasse a minha quota-parte de responsabilidade cívica - em dinheiro, obviamente. Neste caso, e avançando pela linha telefónica, não eram duas as mãos que eu visualizava, mas três: uma estendida, pedindo; a outra, de polegar erguido, aludindo à boa causa; e a última, de palma em riste, garantindo-me que a recompensa financeira chegaria. Eu, na minha ingenuidade, e sem ter captado com suficiente rigor os trâmites do negócio, supus que os lucros da investida ao petróleo submerso, que o mesmo é dizer os lucros do prejuízo, me tocariam também na devida percentagem. Estive quase uma hora a falar com o Mr. Banks (um nome bem a propósito, diga-se de passagem), tendo os últimos 15 minutos sido empregues na minha tentativa de o fazer compreender, sem me levar a mal, que eu não estava interessado, não em ajudar a limpar a costa americana, não em contribuir para fazer do planeta um lugar melhor, mais justo, mais respirável, mas em lucrar, e ainda por cima de forma ínvia, complexa, sinuosa, com a catástrofe ambiental, abrindo inclusivamente assim um precedente para que, no futuro, depois da BP, viesse a CP, a DP, a EP, a FP e outras multinacionais identificadas pelo P do petróleo, da porcaria, da perversidade e, numa dimensão mais religiosa (agora tão cara, como pretexto, aos fazedores de guerras), do pecado, provocarem novos desastres, novas tragédias, destinadas a levar ainda mais para a frente um sistema económico que, justamente pelo seu impacto social, já mostrou à saciedade que tem, ele sim, e mais do que a maré negra, de ser travado. Se o fosse, talvez o mundo entrasse na mão.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

DAS BOAS INTENÇÕES

A escrita, como qualquer actividade criativa, deixa um lastro vivo que se vai desenvolvendo dentro e/ou fora do criador. Eu, por regra, escrevo e sigo em frente, mas excepcionalmente posso encontrar no processo de escrita uma centelha solta, deslocada do contexto, e então comprometo-me com ela a resgatá-la ao corpo estranho em que se encontra e a dar-lhe nova casa. Aconteceu-me isso a meio de um dos últimos textos que escrevi, a respeito da violência do pensar, quando ressalvava, antes de abordar uma reflexão publicada por um amigo, que “a aventura interpretativa pousa sobre alguns dos ramos mais finos da árvore intencional”. Dei-me então conta, e desculpem desde já, primeiro, o autoconvencimento (quem sabe, cabotino) e, depois, o aparente narcisismo, de que tinha criado uma metáfora de raro brilho, pelo menos no meu universo metafórico. De facto, a intenção é uma árvore, há toda uma raiz na sua base e um tronco denso que se expõe numa ramagem diferenciada e mais sensível à medida que se estende, que o seu alcance é mais subtil, mais delicado, mais profundo. Já a interpretação é um pássaro que provoca efeitos distintos consoante a resistência da parte do ramo em que pousa e a intensidade com que o faz. Se esta for maior do que aquela, o pássaro quebra o ramo, magoa a árvore, mutila-a, e ele próprio não sai ileso, já que se assusta e tende a cair, embora possa recuperar o equilíbrio no voo. Mais do que a eventual beleza da metáfora, interessou-me, porém, a sua utilidade, num tempo em que nos atiramos uns aos outros munidos das mais incendiadas certezas, como quem come sopa em prato raso, e com a nossa fome de imediato, de explicação, nos elefantizamos, nas patas e na memória, devastando o que falta da porcelana do mundo. Podem interpretar este texto como arrogante, mas não era essa a minha intenção.

OS PÉS PELAS MÃOS

A minha filha está na cozinha, em bicos de pés, a tentar chegar com as mãozitas a um pacote de bolachas que eu afastei o suficiente, julgo, da borda do balcão. Afinal, julgo mal: ela fez cair o pacote. Ponho-me a imaginar o que pensará ela sobre a conquista - se achará que foram as mãos as responsáveis, se atribuirá o mérito à inclinação dos pés, se premiará o conjunto ou se nem perderá tempo a reflectir sobre isso, que é o mais provável. O meu pai está na cozinha, sentado, a dizer-me que a ciência, mesmo sendo um cemitério de hipóteses, é o único caminho para a verdade, ao passo que a filosofia é, na generalidade, um amontoado de disparates. Segundo ele, a filosofia é apenas um degrau, um degrau que está abaixo da ciência. Eu pergunto-me, e pergunto-lhe por outras palavras, sem que ele mostre vontade de me ouvir, se esse degrau não estará para a ciência como os pés da minha filha estarão para as suas mãos na abordagem ao pacote de bolachas.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

PENSAR

Li há dias, citada por um amigo, uma frase enigmática de Agustina Bessa-Luís: “Pensar é o acto mais violento que há”. O meu amigo interpretava-a numa dimensão conjuntural, relacionando a violência e, ao mesmo tempo, a necessidade do pensar com “os sinais de degradação de um sistema económico-social provavelmente em vias de deixar de fazer sentido tal como o conhecemos”; ou seja, o meu amigo insinuava que esquecer, que trancar a porta do pensamento, seria menos violento no presente, mas teria consequências terríveis no futuro. Esta reflexão valorizava, sobretudo, na frase de Agustina, a violência apontada ao próprio sujeito pensante, como se afirmasse: “É violento para mim pensar no que se passa”. E depois, já de sua livre vontade, exortava esse mesmo sujeito pensante a pensar, a ser violento consigo próprio face a uma demanda superior, a do mundo - de que ele, claro, faz parte. Admitia, assim, ainda que estejamos a falar num plano simbólico e em que a aventura interpretativa pousa sobre alguns dos ramos mais finos da árvore intencional, a violência como meio legítimo para perseguir determinado fim. Eu sinto a frase de Agustina de outra maneira: pensar é violento porque quebra justamente o ramo da árvore, da árvore da existência, da árvore universal. Pensar, ou aquilo a que comummente se chama pensar, que é, no fundo, a face voluntária do pensar, o pensar desejado, o pensar procurado, o pensar intencional, equivale a separar, a desligar, a desunir. A pessoa que pára para pensar, como a própria expressão indica, pára. Ela provoca o pensamento, ela desconfia do pensamento que lhe chega, ela encomenda outro pensar. E isso, pensando (as palavras são fantásticas) no universo não como um corpo vivo mas como um vivo sem corpo, é violento. Não digo, com isto, que seja mau ou bom. Dar à luz, por exemplo, é violento. Pensar, no sentido aqui analisado, será como dar à luz e, simultaneamente, tirar à luz, extrair do infinito, matar, somar ao nada, subtrair ao todo. E, afinal de contas, deixar tudo na mesma. Mas há, claro, infinitos planos de interpretação do pensar, o acto de pensar pode ser focado e perspectivado de formas inquantificáveis, correspondendo a cada uma delas mil e um outros efeitos relativos e juízos de valor. Nem todo o pensar é corpo vivo, embora muita gente pense que o pensar que é vivo sem corpo é não pensar. Quem pensa isso nega os opostos, nega o paradoxo da existência, nega-se - dispensa-se. E eu não imagino coisa mais violenta.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

CERTIDÃO DE ÓBIDOS

Tenho uma amiga que não sabe de onde veio, ou de quem veio, mais precisamente. Veio ter comigo assim, de repente, do nada, como terá vindo ter com ela mesma. Depois de algumas conversas, e percebendo que, embora perdidos na encruzilhada de sentidos que a vida nos aponta, ambos vivíamos em nós mesmos, e por isso nos entendíamos, confidenciou-me que o segredo da sua génese lhe fora sonegado desde que mostrou curiosidade sobre ele. Fê-lo, claro, porque faltavam cartas na mesa. Desorientada, naturalmente, disparou em todos os sentidos, como uma mãe que procura um filho desaparecido, tocando nos ombros de cada oportunidade, à espera de que ela se vire e a cara lhe sorria. Desenvolveu a fé. Falhou, falhou, falhou. Foi aprendendo, por razões de sobrevivência tão intimamente ligadas a quem tem algo de fundamental para encontrar, mesmo não sabendo o que seja ou não tendo pistas sobre onde esteja, a retirar de cada falhanço a ilação certa, o aspecto bom. Reverteu em amor o que para quase todos seria medo e ódio, uma vida amarga, um mar de espinhos. Como a roda de um carro, ou talvez de uma bicicleta, dada a sua propensão, de raiz dedutível, para as coisas mais transparentes, menos engenhosas, foi acima e abaixo, ao oito e ao oitenta, e entre ambos chegou a deixar de rodar, por uns tempos. Ou seja, tentou tudo. O aconselhável e o impensável, o sensato e o louco, a diluição no colectivo e o radicalismo individual. E os tons do meio, tantos quantos pôde, até hoje, coleccionar. Quando, numa dessas vagas, deu comigo, era como se quase não lhe faltassem peças do puzzle mas não soubesse onde as pousar, como se não tivesse chão. Propus-lhe um uso incerto do meu, algures entre a realidade e a fantasia, um meio conto. Parecia decidida a ficar, a permanecer, mas acabou por deixar o meio conto a meio, não sem antes se fazer valer da experiência acumulada na sua busca pessoal para me desbloquear uma veia criativa, uma via construtiva, e acender mais uma luz no sentido da minha vida, ironia de um destino que ela, então, não reconhecia como tal, ou não reconhecia de todo. Foi para casa, para Óbidos, a terra onde nasceu. Ter-se-ão passado dois meses. Hoje recebi uma carta dela. Lá dentro, li que não lhe importava já outro sentido na vida do que estar bem e em paz, e sorrir, com dignidade, esteja onde estiver, faça o que fizer, seja qual for o desafio que lhe aparecer pela frente. A questão terá deixado de ser descobrir o sentido da existência para passar a ser existir em todos os sentidos. Nos dela e nos dos outros, como existe, de facto, no meu. Pensando nisto, aliás, perguntei-me se o verdadeiro sentido da vida dela, por paradoxal e até algo triste que enganadoramente se afigure, não seria ajudar os outros a encontrar o sentido da vida deles. Varrendo com uma mão os pensamentos e já quase a guardar, com a outra, o envelope, estremeci de surpresa quando, ao passar os olhos pelo remetente, li: Rua do Cemitério. Então, não me perguntem porquê, tive a certeza de que a minha amiga estava bem, como que renascida. Aquela carta era uma certidão de nascimento. E, pelo que não deixa de ser outra ironia do destino, uma certidão de Óbidos.