quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O DESEJO

Nada expressa com a eloquência do desejo os limites do pensamento, como nada expressa com a eloquência do filho os limites do pai. O desejo nasce atado às expectativas de quem o criou, não podendo o abrir dos seus olhos dar-lhe a ver a liberdade essencial que o constitui. O meu pensamento formula um desejo e atém-se a ele, à sua sorte, prende-se a algo que lhe escapa, a uma magia cujo truque desconhece, ficando a glória ou a revolta do pensador suspensas do cumprimento ou da frustração desse desejo. Até que o pensamento se dilua ele próprio no céu da vida, muitos desejos partirão para lá como seus enviados, não causando surpresa que uns lá não cheguem e outros de lá não voltem. É preciso crer para ver, e crer mais não é do que viver. Crer é amar. O desejo representa a incapacidade, o medo de crescer, a recusa em abrir os olhos da alma. Daí que a expressão “matar o pai” adquira tanto significado na psicologia: matar o pai é justamente matar o desejo a que cada filho nasce agarrado.
Então, se em vida todos somos filhos e pais, por que haveria o pensamento de dispensar essa ruptura? E o que acontece quando o pensamento se livra do desejo que o agrilhoa? Ele voa consciente de si mesmo, ele plana e bate as asas consoante a eternidade, pois tudo se compacta para ele em cada momento, fazendo dele mesmo esse tudo, mostrando-lhe que ele é tudo e tudo pode, incluindo deixar de o ser. E ele deixa, claro. Ele deixa até que novo e novos voos o enraízem à liberdade, até que o amor de pensar em cada um afague no seu colo o medo do que cada um pensa de si, como uma mãe recebe, extenuada e feliz, o recém-nascido que tanto lhe custou dar à luz, depois de arranques e recuos, de conquistas e perdas, de ânimos e desesperos. Creio, aliás, que se não existe um equivalente materno da expressão “matar o pai” é porque a mulher, passando pela experiência de ser mãe, de conceber, desmonta a mecânica do desejo, encarna o sentido da vida e percebe que vale sempre a pena cobrir de amor e gratidão a nudez do sofrimento. Dar à luz é, pois, tirar às trevas, é salvar. Libertarmo-nos dos nossos desejos, aceitarmos plenamente o que nos oferece a experiência de existir, é dar à luz em cada instante. É darmo-nos à luz.

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