sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

MAIONESE

O dedo abana, mas não sabe o que quer. Ou melhor, sabe que quer paz, mas não se permite tê-la. Abana porque não se sente credor de não abanar. Abana porque abanar é querer e ele não pode deixar de querer; porque querer é poder e a única coisa que ele pode é querer, embora não saiba o que quer, ou o que quer que seja que lhe permita poder. Mas vai saber. Ou acredita nisso. Por isso abana.

DO VAZIO

António era um bife. Mal passado, passava mal. Mas tinha a resistência suficiente para lutar contra os que o queriam passar bem, pois sabia que “uma vez bem passado, bem passado para sempre”. Passava mal no presente, mais precisamente, já que o seu passado fora até bem passado, ou, como todos os passados, bem e mal passado. Em parte, era com isso que ele se passava: se, por um lado, “uma vez bem passado, bem passado para sempre” e, por outro, o seu passado havia sido bem e mal passado, ou seja, em parte, bem passado, porque não estaria ele bem passado no presente? Talvez, sem o ter presente, estivesse. Mas então por que razão passava mal? Era uma problema pesado, difícil de ultrapassar, e por isso António pediu ajuda. Foi ter com um bife que, por haver passado muito e (aparentemente) passar bem sem estar bem passado, talvez o pudesse fazer passar melhor no futuro, passando-lhe uma receita, ou algo assim, que o dispensasse de ser bem passado para deixar de passar mal. Era o melhor presente possível e, à beirinha do Natal, António passava o tempo todo, incluindo todo o tempo passado com o outro bife, a pedi-lo. Porém, passado pouco tempo, e vendo que António o havia passado mal a ansiar pelo momento de o passar a passar bem sem estar bem passado, o outro bife explicou-lhe que esse não era pedido que ele pudesse fazer a não ser a si próprio, pois nem ele, o outro bife, e muito menos o Pai Natal o poderiam satisfazer. Completamente passado, aqui já não interessa se bem se mal, António deixou o outro bife com um cortante “passar bem” e foi para casa pensar que passaria a mais desconsolada consoada da sua mal passada existência. Só, e descompassado com a ideia de que mais vale só que mal acompanhado, jantou um bife bem passado e passou o resto da noite a dormir, passando a linha do Natal sem se aperceber. Ao acordar, olhou para a árvore luzente que, apesar de tudo, havia comprado e percebeu que alguma coisa se tinha passado, pois no lugar do passado estava lá um presente. Entusiasmado, correu a abri-lo. Era uma bifana. Dormia como um anjo por nascer, mas já se constatava que era uma bela bifana, daquelas que fazem qualquer bife, mesmo o mais indefinidamente passado, como António, ultrapassar-se. A incredulidade guiou-o, qual sonâmbulo, até à casa de banho, onde passou água pelos olhos. Foi então que, confrontado com o espelho, viu que não se via. O seu tempo, dizia-lhe a superfície das imagens avessas - e que ali estampava também a do Natal - tinha passado. António deixara de ser um bife para passar a ser nada, como acontece com todos os bifes. E não lhe restava sequer o consolo de, enquanto nada, pensar que quando fora um bife o havia sido mal passado, já que passara à história com essa incerteza. Resignado, decidiu aprender com o passado e viver plenamente a espécie de segundo nascimento que lhe fora concedida. Outrora recém-nado, hoje recém-nada. Nesse preciso momento, a bifana acordou.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

FALSA PARTIDA

Acaba de cair um prédio aqui ao meu lado, as pessoas ainda nem tempo tiveram para reagir, mas eu já estou em pânico, à espera do que irá acontecer. A poeira levanta-se e, assim de repente, não me lembro de nada que me possa acalmar a não ser um beijo teu. Estou sobressaltado, só assim se justifica um recurso poético tão fajuto como o que acabei de usar. Tens de compreender, o prédio só caiu agora, eu ainda não sei como reagir a isto, as próprias pessoas, lá fora, que não têm crises de ansiedade como as minhas, ainda não sairam do silêncio. Permanecem, imagino eu, boquiabertas com o sucedido, naquela franja temporal em que o dedo de Deus faz pause no mundo, ou neste mundo, neste mundo pequenino que é o meu, cada vez mais centrado em ti. Tu desculpa, eu sei que estou com metáforas hediondas, mas antes isso que peidos. Se fossem peidos tu não aguentavas, era um fedor desarmante, até para mim que já os conheço. Espera, estou a ouvir qualquer coisa, acho que é uma mulher a gritar, talvez sejas tu. Não, não, isso agitava-me imenso e eu agora não posso sair daqui, tenho de travar esse pensamento. Não, de maneira nenhuma, tu nunca serias, olha que história, o que é que tu andarias aqui a fazer? Só se fosse para me veres, mas isso era impossível, tu não queres nada comigo, já mo disseste uma dezena de vezes e eu não creio que mudasses assim de opinião por dá cá aquela palha. É claro que os prédios também não caem todos os dias e hoje caiu um mesmo aqui ao meu lado, mas isso não tem nada a ver, a não ser que tenha. Talvez estejas magoada, se calhar é melhor eu ir lá abaixo. E daí não. Sinto-me mais útil aqui, à beira do telefone. Se te tiver acontecido alguma coisa, e se eu me aperceber, posso chamar uma ambulância mais rapidamente. É isso, apesar de tudo ainda consigo raciocinar, já não é mau, no meio deste terror. Nunca pensei manter o sangue frio numa situação destas, confesso-te, sempre achei que quando te visse em perigo ia berrar histericamente até que alguém me acudisse, mas não, estou-me a controlar, como vês, e isso é positivo para a nossa relação, se sobreviveres agora e se um dia achares que a podemos ter. Apetece-me espreitar pela janela, mas é forte demais para mim. Não suportaria ver-te debaixo de um pedregulho, esvaída em sangue, às portas da morte. Dava-me vontade de me atirar cá de cima e morrer juntinho a ti, como nas tragédias românticas. Para mim, juro-te, não teria nada de trágico, era até um sonho, um sonho de amor, coisa magnífica. Olha, sabes que mais: já abri a janela! Vou espreitar! ESTÁS AÍÍÍ? ENTÃO ESPEEEEEEEEeeeeeeee...
- Ó Alves!?
- Hã? O quê? O que é que foi, mulher?
- Foda-se, que puta de berro tu deste agora!
- Eh pá, desculpa lá, estava a dormir.
- Pois, e eu tenho que me levantar às seis e agora vai ser o caralho para voltar a adormecer...

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

FINAL FELIZ

- Augusto, tire-me isso da frente, já não aguento ver mamas.
- Mas, Bráulio, foi você que me pediu o jornal.
- Eu sei, só que cheguei a essa página horrível e impressionei-me.
- Está muito sensível, hoje, Bráulio.
- Estou. Fico assim quando adoeço.
- Mas... Mas passa-se alguma coisa?
- Passa, passa. Há dias vi a Clara num jardim.
- Ah, percebo. Veio-lhe a nostalgia.
- Você fala disso como se me tivesse vindo o período.
- Ehehe... Desculpe. Na verdade, é mais ou menos a mesma coisa.
- Olhe, já não lhe disse para me tirar isto da frente?!
- Ah, perdão. Pronto, já está. Já não tem mamas à frente dos olhos.
- Se eu as pudesse ao menos tirar da cabeça. As da Clara, claro.
- Da Clara, claro. Que engraçado.
- Engraçado o quê? Não vejo qual é a graça!
- A repet... Deixe lá. Quer um chazinho?
- Preferia uma Seven Up, se não se importa.
- Por acaso não sei se a Camélia se lembrou de comprar, mas eu pergunto.
- Não, não a chame. Se ela vier aí eu vou ver as mamas dela e depois é um problema.
- Então, Bráulio... Não pode continuar a recusar confrontar-se com mamas, elas andam por toda a parte. E, mais a mais, de certeza que o que o prendia à Clara não eram só as mamas.
- O que é que você sabe disso?!
- Nada, nada. Mas acredito que se ela o deixou assim nesse estado não foi só pelas mamas que tinha.
- Totalmente! Eu nela não via absolutamente mais nada.
- Pronto, pronto, eu respeito isso. Cada um sente as coisas à sua maneira.
- Nunca na vida se me apresentou um par de mamas como aquele, era uma coisa descomunal, vívida, espectacular! Até me dói só de pensar.
- Talvez seja o exagero próprio de quem lhes sente a falta. Se calhar quando as tinha nas mãos não lhes dava o devido valor.
- Lá está você a falar do que não sabe...
- Não será bem assim, Bráulio. Afinal, eu fui assistente de mamógrafo durante seis anos, alguma coisa perceberei do assunto.
- Isso não tem nada a ver. Mamas como aquelas não podem ser comparadas com quaisquer outras. De nada lhe vale a experiência científica, nem para me convencer nem para fazer, sequer, uma ideia aproximada daquilo de que estou a falar.
- Pronto, tudo bem, não insisto. E agora? O que é que vai fazer? Ficar aí a martirizar-se? Acha que é uma atitude inteligente?
- Ei! Ei! Que modos são esses?! Já chegámos à Madeira?! Você não se esqueça de que ainda sou eu quem lhe paga o salário!
- Que salário, Bráulio?! Você está realmente a dar em doido! Sabe uma coisa: o melhor é eu tentar encontrar a Clara e trazê-la cá para ver se ainda há hipótese de vocês se entenderem.
- Isso, faça isso. Mas olhe: você já deixou de ser meu empregado?
- Há anos, Bráulio!
- Não repita o meu nome tantas vezes. Irrita-me. E agora vá. Vá buscar a Clara.
- Claaaaaaaara!
- Olha, passou-se... Ó Augusto, você acha que ela vai vir assim?
- Claro, ela sempre esteve aqui.
- Como assim?
- Espere. Aí está ela. Clara, explica aqui ao Bráulio porque é que o deixaste.
- Porque gosto muito mais das chupadelas do Augusto. Ele é mais delicado, não sei, e ao mesmo tempo mais animal. É difícil de explicar, acho que só visto. Augusto, põe aqui a boquinha.
- Anda cá.
- Uuui! Aaau!
- É isto! Ufff! É isto!
- Párem já com essa merda!!!
- Que foi?
- Sim, o que foi?
- Seus vândalos! Seus demónios! Não se contentam em destroçar o coração de um pobre velho, ainda gozam com ele, seus filhos duma valente puta! Mas esperem aqui que eu já vos digo. Ó Liça, anda cá!
- Diga, Bráulio.
- Anda cá pôr-me essas tetas a jeito e, já agora, essa coninha, que temos uma lição a dar a estes miseráveis.
- É para já.
- Ah! Uiiiiii! Isso, Bráulio! Uaaaaaau!!! Meu Deus! Ah! Tão bom! É incríiiiiivel!
- Sim, mas não faças escândalo. E não te venhas sem me pedir autorização.
- Aaaaaah! Uuuuuuui! Aaaaaau! Tou quase, tou quaaaa....
- Pára!
- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!
- Puta! Desautorizaste-me!
- Ai foi tão bom...
- Estava a ser, mas estragaste tudo.
- Porquê?
- Porque estes cabrões agora vão duvidar do meu domínio absoluto sobre ti.
- Cabrões? Quais cabrões? Não vejo ninguém.
- Como assim? Co.. Olha, foram-se embora!
- Também, já não era sem tempo.
- É, acho que tens razão. Faz-me uma coisa, por favor: traz-me o jornal. Está-me a apetecer ver a página das mamas.
- É para já!

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

CINEMA

“Achei interessante”, dizia, de cigarro na mão, a Bafiela. À volta dela, outros cromos repetidos da cultura portuense assentiam de sorriso místico, como se ela estivesse a dizer uma grande coisa. Eu, farto daquele “já há”, saí dali tipo camisola do brasil: verde e amarelo. Sim, sim, era tanto o nojo que transportava. Só que, dessa vez, ela notou. E, pedindo desculpa aos parceiros de tertúlia, veio atrás de mim. “Ei!”, chamou. Eu, já com a chave do carro na mão, olhei-a, surpreso. “Desculpe, eu sei que não nos conhecemos, mas não pude deixar de reparar no seu olhar para mim, agora mesmo, à saída do cinema. Tem alguma coisa que me queira dizer?”, perguntou. “Não, nada. Porquê?”, devolvi eu, mula. Pensei, momentaneamente, em pôr à prova a sua perspicácia. Se ela era tão boa a interpretar filmes impenetráveis, a ponto de toda aquela plêiade de hemorróidas cultas se curvar à mera pronunciação da palavra “interessante”, não demoraria nada a perceber o que me ia na alma. “É que fiquei com essa ideia... Pareceu-me incomodado”, respondeu. “Incomodado, eu? Desculpe, mas não estou a ver aonde quer chegar. Então eu saio do cinema, venho para...”. Interrompeu-me: “Claro, claro. Não se preocupe. Eu é que tenho de me desculpar. Boa noite”. Em passo lento, de quem pensa, voltou para junto da nata da cidade. Eu, ainda com a chave do carro na mão, fiquei como o tolo no meio da ponte. Por um lado, queria-me ir embora, até porque estava a precisar de dormir. Por outro, sentia-me insatisfeito, apetecia-me puxar um bocadinho mais aquele fio, ver no que é que aquilo dava. Guardei a chave no bolso e voltei ao cinema. Desajeitado, toquei-lhe na gabardina, pelas costas. Ela voltou-se e, como se já estivesse a contar, sorriu. Despediu-se dos presentes, olhou-me e perguntou: “Vem?”. Acompanhei-a naquele seu passo, sem saber até onde. Em silêncio, fui guiado até ao meu carro. “A partir daqui é consigo”, disse ela finalmente, numa ambiguidade calculada que parecia querer sublinhar a sua percepção de que, na balança dos meus sentimentos, o encanto passara, subitamente, a pesar mais do que a repulsa. Sem ponta de charme, perguntei-lhe onde morava. Ela riu-se, já nas suas quintas, como se morasse ali mesmo, naquele corpo, naquela aura segura. “Quer boleia?”, arrisquei. Escusado será dizer que houve um segundo de intervalo antes da resposta dela. Um segundo de silêncio – não a preceder o jogo, como acontece no futebol quando alguém morre (aí é um minuto, eu sei), mas a meio, justamente no seu epicentro. De um lado, o sadismo; do outro, a vulnerabilidade. A vitória estava mais que anunciada, e não havia ali árbitro à vista para subornar. “Por que havia de querer?”, questionou ela, a fazer render o peixe, como um artista da bola que, em posição de remate e com a baliza aberta, prefere adornar um pouco mais a jogada para aprimorar o golo. “Não sei, trouxe-me até aqui”, justifiquei, desconfortável. “Trouxe-o até aqui porque o achei interessante”, justificou ela, enorme. “Acha tudo interessante?”, provoquei, num improvável contra-ataque de ironia que ela, estranhamente, não percebeu: “Como assim?”. De repente, a bola estava do meu lado: “Disse o mesmo sobre o filme, há pouco, aos seus amigos”. Foi então, quando eu já esperava um novo e bem mais saboroso segundo de silêncio, que ela, semicerrando os olhos, enervada, incrédula até, se revelou: “Olha, meu filho da puta: se me quiseres comer o cu, muito bem. Se não quiseres, há mais quem queira! O que eu não estou é para aturar estas merdas! Por falar nisso: tens SporTV em tua casa?”.

sábado, 22 de setembro de 2007

SIMPÁTICO

Há coisas do caralho. Desculpem lá: é mesmo a primeira vez que uso um palavrão neste blog, mas vão perceber porquê. Não é que há dias fui ao Sinatra’s, que é o café em frente a casa do meu pai, na Rua da Firmeza, e vi lá o George Clooney? Estava a passar na televisão, o gajo...

domingo, 26 de agosto de 2007

POIS CLARO

Ao acordar dizia sempre um disparate. Dizia depois outro, sempre que tinha de o explicar: dizia que limpava o espírito, como beber um copo de água limpava o corpo. Era uma questão de saneamento. Básicos, ambos, o saneamento e a questão. Por outro lado, havia nisto uma possibilidade de sapiência que a fazia hesitar em chamar-lhe estúpido, embora se pudesse sempre defender com o argumento de que chamar-lhe estúpido era o disparate dela. Mas ele não ia nisso, primeiro porque chamar estúpido a um indivíduo que sempre que acorda diz um disparate não é necessariamente um disparate; depois porque, se o fosse, seria um disparate estúpido, já que, com tantos disparates para dizer, não faria sentido escolher um disparate tão pouco disparatado. Aliás, não faz sentido escolher um disparate. Aliás, um disparate não faz sentido. Enfim, o argumento que ela poderia usar para se defender de lhe ter chamado estúpido, caso viesse a descobrir que afinal a estupidez era mesmo sapiência, parecia-lhe, a ele, um disparate. Por isso é que, naquela manhã, em vez de dizer um disparate, ele lhe chamou estúpida.

domingo, 22 de julho de 2007

QUÍMICA

Olha o Falso! Então, Falso? Há que tempos! Tás fixe? Olha, esta é a Foca, uma amiga minha. Que cena, pá! Tás bem? Fogo, olha, a gente vem dali, tá lá assim uma cena mesmo indescritível, um electro meio marado, misturado com não sei o quê… Ó pá, nem é rock nem é aquele pop pop, sabes? E o gajo mistura maaal, Falso! A sério, não tás a ver! Eu e a Foca já nos távamos a passar. [faz uma festa no peito de Falso como se lhe estivesse a limpar o pó e volta à carga] E tu? Tás aqui, quê, a fumar um cacete? [Falso não fala, só sorri, meio envergonhado] Iá… Ó pá, mas tás fixe? Que cena, já não te via há bué! [Foca, essa, está prestes a deixar cair o sorriso] Este gajo [virada para Foca] é que é o guitarrista dos Phones! Eu tenho de te mostrar Phones, estes gajos são muito fora! Mesmo! [este “Mesmo!” é dito com os olhos em brilho, toda ela parece uma espinha de deslumbramento a rebentar] E… e já têm cenas novas? [hesita na pergunta porque se apercebe, finalmente, de que os amigos de Falso estão com cara de sopa azeda] Ah, desculpem lá: eu sou a Cláudia. Ela é a Foca. [eles ruminam, em jeito de anuência] [fica um silêncio agreste] Pois é, Falso… Vê lá se dizes alguma coisa! Ainda tens o meu telemóvel? [Falso faz sinal de que sim] Tens qual? O 91? [ele repete o sinal] Ah, é que eu agora também tenho um 93, se calhar dá-te mais jeito [Falso faz sinal de que não] Iá, então olha, a gente vai bazar! Bute aí, Foca? [Foca arrota, nervosa] Xau, pessoal! [elas afastam-se, com o estilo possível; eles certificam-se disso] [por fim, Falso fala] Ó Brito, faz esse!


sexta-feira, 20 de julho de 2007

JURA

Adoro havaianas. Se alguém bate à porta dizem: “Havai!”. Têm curvas, biquinis reduzidos e adaptam-se a nós. Às vezes fazem demasiado barulho, sobretudo quando o suor nos cola o corpo ao delas. Mas têm um ritmo próprio, lascivo, sensual. O problema é que, passado o Verão, perdem o interesse. Ainda há dois meses comprei umas para a minha mulher e ela já não as usa.

ROMA

Passava horas ao espelho. Revia-se nele. Eram ambos incrivelmente superficiais. O reflexo da sua imagem pouco lhe importava, era mesmo pelo espelho que ficava ali, horas e horas, para desespero da namorada, que o tinha como o maior narcisista à superfície da terra. Dizia-lho vezes sem conta, mas ele não se aborrecia. Gostava de ouvir a palavra superfície, fazia-lhe lembrar o espelho. Ela, no seu profundo desespero, procurava mostrar-lhe que havia outros espelhos. "A lua, por exemplo, é um espelho do amor". Ele não fazia caso. Dizia "pois" e continuava a perscrutar a magnífica superficialidade daquele objecto pendurado acima do lavatório. Daí saltava, às vezes, para a televisão, quando dava futebol, mas depressa perdia o interesse no jogo e focava o olhar no ecrã, fazendo análises comparativas entre este e o espelho, que saía sempre vencedor. O mesmo se passava com as janelas, os pratos, as ruas ou o corpo da namorada. Eram subperfícies, cópias imperfeitas do espelho, esse sim a verdadeira expressão formal de Deus. Um dia, ao ter este raciocínio, sentiu-se profundo. Ficou doente. Feliz mas preocupada, a namorada levou-o a um médico, depois a outro, a outro e a outro. Nenhum lhe soube dizer qual era o problema. "Mas ele anda estranho, opaco, senhor doutor! Parece um fantasma, uma sombra do que era", insistia ela, já sem sequer esperar pela resposta. Não tardou muito a que os papéis se invertessem: ela a estudar o espelho e ele a estudá-la a ela. Foi assim durante anos, precisamente os mesmos que ele passara a olhar o espelho. Até que, enjoado de olhar para eles, o espelho se partiu. Cristalizados, ela e ele olharam-se como nunca antes e nunca depois. Num mundo sem espelho, lua ou futebol, foi amor à primeira vista.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

ADEUS

Se levas nas tuas asas
o fio da minha paz
não voes para lá das brasas
onde arde este corpo frio
que jaz

Deixa-o ao menos ser alma
enquanto acaba de arder
e bate as asas com calma
para que não lhe custe tanto
morrer


domingo, 8 de julho de 2007

PAZ


Hiberno, 48 anos, tivera uma vida inteira para se habituar ao ciclo: dois dias radiante, um na mó de baixo. Era sempre assim. E ele, de facto, já não se importava. Na verdade, até lhe sabia bem poder planear a vida com a antecedência que quisesse. Bastava fazer contas aos dias. Só que um dia, sem contar, Hiberno percebeu que a sua vida tinha os dias contados. Triste, num dia em que era suposto estar contente, decidiu contar a sua vida. Era barbeiro, rapava pêlos todos os dias. Ou melhor, dois dias sim, um dia não, porque, pelo sim pelo não, preferia respeitar o ciclo. Cortava o que crescia, como na vida, antes de ser contada. Contava isto quando, de repente, contente, num dia em que era suposto estar triste, decidiu cortar a sua vida. Conta-se que ela voltou a crescer, mas sem Hiberno. Esse, diz quem lhe sente a falta, hibernou.

sábado, 7 de julho de 2007

SIGA

Eu estava ali, tenso, emaranhado, ansioso, à espera de uma pequena aberta no fulgor do trânsito para atravessar a rua. Sabia que não podia tremer, caso contrário atravessava-me a rua a mim. Para evitar isso, no entanto, tinha de atravessar primeiro outra rua, que me punha ainda mais tenso, emaranhado e ansioso. Era a minha rua. Tinha de passar para o outro lado, o meu lado tranquilo, lúcido e paciente. E aí, naquele preciso momento, o trânsito estava tão infernal como me parecia o meu problema. Pensei então que se engolisse a minha rua talvez me fosse permitido ficar ali, do lado de cá da outra rua, parado, invisível. Fi-lo, mas o sangue quente dos carros vomitou-me a rua de volta. Sem escolha, levantei o dedo. As duas ruas ficaram, por um momento, a olhar uma para a outra. E eu, o melhor que pude, atravessei a rua que se desenhou entre elas.

PENA

A fruta está lá, aberta, em ferida. Da lâmina da faca escorre a crueza, a marca líquida do assassino. É aquele o sumo da verdade, mas nenhum de nós o bebe. Corta! Ok, não está mal, mas tens de dizer isso com mais certeza, como se estivesses tu a cortar a fruta. Vamos lá repetir. A fruta está lá, aberta, já um pouco oxidada. Da lâmina da faca escorria a crueza, a marca líquida do assassino. Foi pelo cano o sumo da verdade, nenhum de nós o bebeu. E agora só nos resta a fruta. Podre.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

ANTUÉRPIA

Sou o que se chama um bode expiatório. Mas o que é que um bode expiatório se chama? Pois. Por não saber isso é que eu não sei o que sou. Já fui a uma série de montanhas, vivi com os bodes, conversei com eles, até soube o que eles se chamavam, mas nunca tive a sorte de encontrar um expiatório. Não estou a falar daqueles que, como eu, se dizem bodes expiatórios mas não sabem o que um bode expiatório se chama. Assim também eu era bode expiatório. Não. Estou a falar de bodes expiatórios verdadeiros, coisa que eu nem sei se há, além de mim. O que eu sei é que há sérias hipóteses de eu ir para o galheiro sem nunca ter sabido quem sou. E isso deprime-me. Faz-me sentir um bode expiatório.

GAJAS

Pereira nasceu Pereira, mas queria morrer Júlio. Detestava continuar, para ele continuar era morrer. E morrer Pereira, isso não. Orlando, já morto, amava o mundo. Foi, aliás, o seu único amor. Aquele pelo qual morreu. Mas morreu para quê, se quando morto se afastou justamente desse amor? Era assim, ninguém o compreendia. E era obsessivo, porque, mal morreu, foi logo para outro mundo. Repetia-se, como eu estou a fazer agora. Pereira não. Pereira era a novidade. Acho que, nele, a única coisa que se mantinha era mesmo o nome. O certo é que, em vida de Orlando, não havia amigos como Orlando e Pereira. Davam-se mal. Mas davam-se. A Orlando, os amigos passavam a vida a dizer: “Pá, especifica-te, não sejas tão lato!”. A Pereira, os amigos, que eram os amigos do Orlando menos o Pereira, diziam exactamente a mesma coisa. Talvez por isso, quando Orlando morreu, Pereira ouviu os amigos. E mudou de nome. Para Júlio.

terça-feira, 3 de julho de 2007

PONTO

Aquele riso quebrado, tipo gaivota, dava-me cabo dos nervos. Isso e o falar à bebé, um clássico do pós-coito: sequenciava onomatopeias de mau hálito a milímetros do meu nariz, como quem faz bolas de fumo, convencida de que lhe ficava bem. Eu já não a podia ver à frente, andava mesmo agoniado, mas não tinha coragem de a pôr a andar. Custava-me imenso a ideia de ser eu a acabar com o relacionamento, porque achava que a ia fazer sofrer mais e não suportava arcar sozinho com as culpas disso. Então sofria eu. Espumava. E explodia, claro. Volta e meia rebentava-lhe o focinho. Era como um bálsamo, aquilo sabia-me pela vida que eu não tinha. Depois, pronto, fazíamos as pazes, íamos para a cama e lá vinha o infantário do mau hálito. Isto era cíclico, inescapável. Eu olhava para o hamster dela a correr na roda e ficava roído de inveja. Até que um dia decidi matar-me. E matei-me.


ZORBA

O Zorba era um cão fabuloso, nunca fazia nada à espera do osso. Eu até podia acabar aqui este texto e “postá-lo” mesmo assim, que ele não se chateava. Às vezes ficava horas nos degraus da sala a ver-me ver televisão. Era maior do que eu. Em tudo. Eu prendia-me a uma realidade. A dele incluía-me. Um dia, sem que nada o fizesse prever, pediu-me o divórcio. Não deu razões, mas bastou-me olhar para ele para ver que era coisa séria. Assinei os papéis sem pestanejar, mas cá por dentro estava como se o meu cão, o Zorba, me tivesse pedido o divórcio. Chorei dias e dias. Lágrimas, por acaso, não. Demorei anos a ultrapassar a dor de não o ter ali, comigo, a sublinhar o nada, que era o que eu fazia. A consciência de que, finalmente, estava pronto a amar de novo só me chegou há coisa de uma hora, quando dei com a Rela, que é a cadela da vizinha, a espreitar pela janela cá para dentro, vendo-me a ver televisão. Abri-lhe a porta, claro, e adoptei-a. Minutos depois, quem me aparece à janela? O Zorba! Estava a chegar de Marrocos, aonde foi engolir uns ovos de haxixe para vender cá, e vinha à procura dela, da Rela. Iam-se casar. Combinaram ali, na minha casa, porque ele queria que ela visse a estupidez de vida que ele teve durante tanto tempo, e também porque estava a dar o Herman. Eu senti um misto de tristeza e felicidade. Tristeza porque ficava sem pau nem bola. Felicidade porque já tinha quem partilhasse a minha tristeza: a vizinha.


FRINCHA

Há uma frincha que dá lá para fora, mas eu continuo aqui, sentado. Pergunto-me se vale a pena levantar-me e dar dois passos até à porta só para espreitar pela frincha. Concluo logo que vale, mas não a pena. Vale outra coisa. Vale um depois melhor, talvez, quem sabe? Mas a dúvida, por enquanto, é suficiente para me manter quieto, inquieto, no lugar. Ponho-me então a ver se crio, se distraio a mente da preguiça do corpo. A única coisa que concedo mexer são os dedos das mãos – e a boca de vez em quando. Mas nunca as suíças. Isso nunca. É, para mim, uma espécie de desígnio sagrado. Desde que tomei consciência de mim enquanto ser diferenciado não tive a mais pequena dúvida quanto à necessidade ética de manter toda a vida as suíças imóveis, contra ventos e marés. Conclusão: nunca descanso. Há alturas em que até tenho vontade de jogar à lerpa. Mas, pronto, voltando atrás: mexo um dedo, mexo outro, mexo os dois juntos, relaciono-os e, de repente, acho que já fiz demais. Não sei por que sou tão ansioso. Um dedo, coisa linda. Outro dedo, coisa linda. “O que é que fizeste para o comer, Saia?”. Pois, já vi que nada. Esta minha mulher passa o tempo todo a babar-se, não faz nenhum. Eu ainda mexo os dedos, mas ela... tem hoje uma entrevista, tem. No meio disto tudo, quem nos faz as compras, quem nos lava a roupa, quem nos limpa a casa, ou seja, quem vive por nós... é o Fó. O Fó, que eu já não via desde amanhã às 18.00, é uma alma rara, um rapaz como qualquer outro. Neste momento, por acaso, até me está a irritar, porque se pôs a pregar um bocado de madeira por cima da frincha que dá lá para fora. Vou ter de me levantar, dar-lhe um soco, sair de casa, comprar o jornal, enfim, arriscar mais uma vez o compromisso de honra que tenho com as minhas suíças.


JOEL

Vou a Lisboa, não vou a Lisboa. Vou a Lisboa, não vou a Lisboa. Ando nisto. É uma espécie de montanha russa, só que não me anima. Acho que vou mudar de atitude. Ora bem, se eu comprar mesmo o bilhete para Lisboa, ultrapasso este vai-não-vai, quanto mais não seja porque, comprando-o, já estou a dar um passo no sentido de ir e, nesse sentido, já vou. Quer dizer, até posso não ir, mas em certa medida já fui – a medida de um passo. Que não é propriamente um passo, pronto, ou melhor, até é um passo pronto, mas não é um passo, ponto. Olha, sabes que mais? Não vou! Ou vou?


ROSBIFE

Um dia destes recebi uma carta que dizia: “As algálias submarinas que inviabilizam a combustão do seu notário serão combatidas com estrepitosa e humedecente bavaroise“. Logicamente, de tudo isto o que me pareceu mais estranho foi o “do”. Não, é que “do” meu notário, quando poderia ser “do” ou “o” meu notário, na perspectiva de quem usa não faz sentido. Mas o facto é que a carta lá estava, caída, à espera da minha mão.
Vim para dentro e sentei-me no sofá, a analisá-la dos pontos de vista semântico e arquitectónico. Era sem dúvida um caso para o meu Licínio. “Ó Licínio!”, gritei, mas nada. Depois ri-me, claro: não conhecia nenhum Licínio. Há já vários anos que me dava disto. Inventava pessoas para encobrir a minha solidão. De repente, mesmo tacteando a carta com os meus nove dedos (o décimo estava lá fora a bater à porta), pus a hipótese de ela própria ser uma invenção, o que configurava algo de ainda mais estranho.
Tomei banho, vesti-me com a melhor roupa do guisado anterior e saí sem saber para onde, mas determinado como se me apontasse à última carruagem da felicidade. A uns dez metros de casa, tropecei noutra carta. Dizia: “Fiolhais, se passas mais uma vez no Realejo, pá, podes ter a certeza de que as ganaderias de Monsanto vão ser afectadas ao défice”.
Mais curta e concisa, esta dava-me uma acção. Ao menos isso. Percebi que precisava de um narrador, mas ali perto só havia lojas de fios. Vagueei, vagueei, até encontrar um estudante. Fez-se luz. Digo eu para mim: “O gajo que escreveu a primeira carta é igual à soma das empadas VIP”. Estava radiante.
Voltei para casa a correr com aquele frenesim de pôr tudo em pratos limpos, mas antes passei só nas Galerias Cebolo, que me fazia jeito. Porquê? Não, por nada, é outra história. Tem a ver com uns outdoors. Bom...
Retemperado, já de chinelos postos, fui dar um beijinho às santolas. A santola 1 dormia profundamente, a 2 está tão habituada a que eu vá lá despedir-me que não consegue adormecer sem um bom par de estalos. Eu sentia-me bem por poder, finalmente, encher o meu copo de whisky e bebê-lo a conta-gotas deitadinho no sofá. E foi o que fiz. No dia seguinte ardia-me imenso a plebe.