terça-feira, 29 de junho de 2010

PASSAR À HISTÓRIA

Há coisas em nós que são extremamente difíceis de trabalhar. Tomamos consciência delas e achamos que, cumprida essa etapa, vai ser fácil repô-las no lugar. É, eventualmente, um efeito perverso dos comprimidos, cada vez mais comuns ao nosso quotidiano, sejam para uso pontual ou crónico: se temos qualquer variação nos níveis considerados normais disto ou daquilo, metemos uma ou várias pastilhas e, em mais ou menos tempo, a regularidade está de volta. Até pode ser que um dia haja comprimidos para a inveja, por exemplo, mas não creio que a raiz de onde ela vem possa ser moldada sinteticamente, que possa ser convertida por um corpo externo. O efeito desses comprimidos será, em princípio, paliativo, no sentido em que, deixado o seu uso, a inveja regressa, a menos que, como acontece nomeadamente com os fármacos antidepressivos, a pessoa aproveite as consequências anímicas da toma para trabalhar, ela mesma, a verdadeira causa da depressão. Detectar inveja em nós próprios é mau, dói por dentro, rói, mas também é bom, na medida em que nos consciencializamos de algo que, a partir daí, podemos tratar. Como tratar, eis a questão. Não é fácil, não é nada fácil, não há fórmulas mágicas e muitas vezes o insucesso acumula raiva à inveja, as duas juntas contra nós, por não as conseguirmos pôr a nosso favor, por não conseguirmos encontrar nelas a outra face, que alegadamente nos querem dar, nos espetam à frente dos olhos, cegos, eles, desesperadas, elas. Não é de hoje que vejo em mim inveja, raiva, ódio, ciúme. Com o tempo, fui-me apercebendo de que esses sentimentos pertencem ao meu mundo pequeno, que se desvanecem à medida que esse mundo se alarga. Não tenho, por exemplo, inveja do universo, embora poeticamente pudesse invocá-la. Não tenho inveja das formigas fortes, das amêijoas-rainhas, das paisagens bonitas, dos homens que ficaram para a História. Mas tenho inveja dos homens que vivem a História, tanta mais inveja quanto mais essa História seja minha, essa História seja história. Tenho inveja de familiares meus, tenho inveja de amigos meus, tenho inveja de colegas meus, tenho inveja de gente do meu país, de gente que se destaca no meu país, de gente que escreve no meu país, de gente da minha idade ou mais nova, de gente que me ultrapassa em conhecimento específico, em saber técnico e proveito público. Porém, tenho pouca ou nenhuma inveja de estrangeiros, e isso é estupidamente incrível. Faz-me perceber o quão territorial é o animal que vive em mim, ou em que eu vivo, ou as duas coisas. Recuso apontar o dedo ao capitalismo, ao espírito concorrencial e competitivo de que fomos desde cedo imbuídos, ou talvez não recuse, mas aponto e pronto, não espero resolver com isso o meu problema, fazê-lo seria como tomar um dos tais comprimidos que nos anulam momentaneamente as dores, que nos silenciam a prazo o organismo, que arrolham o sangue espumante das nossas veias. A culpa, ou a responsabilidade, se quiserem, de eu ser assim é minha, tão minha como a responsabilidade de deixar de ser. Ainda hoje lia, num jornal diário, uma crónica de um escritor que, pela fotografia, deve ter trinta e poucos anos. Como um cão que avista outro, fiquei logo hirto, de orelhas erguidas e pêlo eriçado. Toda a leitura foi tolhida por isso, por essa febre de lhe encontrar um defeito, de o criticar, de lhe assinar a certidão de óbito, tudo coisas que, desde o princípio, mas com mais pujança no fim, se viraram contra mim. Eu ladrei ali para mim próprio. Não sei o que é mais revoltante, se sentir isto, se sentir aquilo. Por outro lado, se eu não tivesse sentido aquilo não teria sentido isto, e se não tivesse sentido isto não sentiria o que agora sinto, ou seja, que aquele escritor contra o qual eu me dispunha era, de algum modo, eu mesmo, ou seja ainda, que em muitos casos os textos que eu escrevo vão ter eus desses a lê-los, a desaproveitá-los, a destruí-los. Pode parecer uma perspectiva estratégica, egoísta, calculista, e não sei como negá-lo, se calhar nem há maneira, se calhar nem vale a pena, se calhar é o que é, mas se o for será um egoísmo sábio, será para o egoísmo, porventura, o tal lado bom que me falta encontrar para a inveja, a tal outra face da raiva, do ódio, do ciúme e de todas as coisas que nos habitam, latentes ou patentes, desde que habitamos o mundo. E, se assim for, levar-me-á para mais perto do meu eu grande, do meu eu estrangeiro, do meu eu universal, do meu eu que não invejo, do meu eu que não inveja. Do meu outro mundo.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

FUTEBOL

Desde muito cedo que sou fascinado por futebol. Sempre tive, aliás, em virtude do tempo que o futebol ocupa na minha vida, queixas das pessoas com quem me relacionei mais intimamente. Acho que já estou um bocado melhor, isto é, hoje posso prescindir de ver um jogo importante, como aconteceu há dias com o Portugal-Coreia do Norte, e não cai o Carmo e a Trindade. Em todo o caso, se puder, não falho. Se não tiver nada para fazer e estiver a dar um jogo na televisão, não invento alternativas. Isso, por um lado, e ao contrário do que possa parecer, já quer dizer que não encaro a minha paixão pela bola como uma dependência, ou pelo menos uma dependência corrosiva, alienante e inútil, estúpida. Se o fizesse, contrariá-la-ia. Foi o que me aconteceu com o tabaco, com o álcool e com outras coisas: quando me apercebi de que ia ser difícil dizer-lhes não, disse. Por outro lado, ainda não consegui explicar para mim próprio, e isso intriga-me, o facto de nunca me ter decidido a fazer vida do futebol, ou seja, a estudá-lo tecnicamente, a aprofundar os meus conhecimentos científicos sobre ele, a trabalhar nele. Há qualquer coisa de platónico entre mim e o jogo, só pode ser. Se não, vejamos: durante cinco ou seis anos fui jornalista desportivo, e garanto que nunca me tocou tão pouco o futebol como então. Dir-se-ia que estava no meu mundo: contactava com os jogadores, fazia-lhes entrevistas, via-os treinar, cobria os jogos, acompanhava os clubes em provas europeias, procurava notícias sobre transferências, sondava os empresários, conhecia os dirigentes - andava mesmo perto de tudo o que me encantava. E, não sei se apesar disso ou se por isso, não lhe sentia o sabor. Decidi sair depois de uma experiência esclarecedora: nas habituais entrevistas antes dos jogos, calhou-me o então treinador do Beira-Mar. Fui para Aveiro já com o trabalho todo feito, perguntas e respostas. Quando voltei, quase não precisei de fazer alterações. No dia seguinte, falei com o director do jornal e disse-lhe que me queria ir embora. Durante uns tempos não quis saber de futebol, era como se me tivesse enjoado, e até pus a hipótese de nunca mais voltar a ligar pevide ao fenómeno, do mesmo modo que deixara de sequer poder olhar para um prato de fígados de pescada depois de uma barrigada deles me ter provocado um enjoo monumental. Afinal, estava enganado. Hoje continuo sem sequer poder olhar para um prato de fígados de pescada, mas recuperei inteiramente a paixão pelo futebol. Talvez resida aí a razão de me manter distante, de o acompanhar ao longe, talvez não me queira desiludir outra vez, embora, de um ponto de vista prático, isso até me fizesse bem. Em todo o caso não deixa de ser estranho, porque, se eu estabelecer uma analogia entre a bola e as namoradas, vejo que neste campo, apesar de todas as desilusões que já tive, voltei sempre a jogo. Enfim, resigno-me à possibilidade de serem as tais razões do coração que a razão desconhece. E, definitivamente, é numa perspectiva passional que o futebol me encanta, numa perspectiva estética, sobretudo, mas também sentimental, de uma intensidade emotiva, de um sentido de compromisso que, claro, se traduz em competitividade, e ainda numa perspectiva organizacional, mas não científica, não dissecada e reproduzida, mais a que espontaneamente se revela, de acordo, por exemplo, com as características diferentes de jogadores de diferentes nacionalidades, que as há, não me digam que não, pois, por mais que um treinador treine os seus jogadores sob determinados princípios, o futebol em campo será diferente se esses jogadores forem argentinos ou alemães, e isso enlouquece-me, adoro vê-lo reflectido na relva, a importância da geografia, da cultura, do contexto, as várias bolas dentro da bola, como se esta fosse, afinal, uma bola de cristal, e cada um de nós, cada um dos apaixonados por isto, uma espécie de bruxa, de medium, medium defensivo e ofensivo, centro e ala, esquerdo e direito, uma bússola movida a fascínio, a deslumbramento, apontada para fora, para fora de si e do seu dono, focada no jogo da vida e na vida do jogo, suspensa da batida, do ritmo de cada lance, à espera do inesperado, como num thriller de estalo. Isto, sim, para mim, é futebol. Daí que não me sinta seduzido pelas análises que hoje proliferam nas transmissões televisivas e em tudo o que é cobertura jornalística dos desafios, obcecadas com os movimentos de ruptura, os passes entre linhas, a dobra do trinco ao lateral, o 4-4-2 clássico ou em losango com estas ou aquelas nuances, a segunda bola (eu vejo sempre uma), as transições e os processos ofensivos e defensivos, a circulação em posse, por aí fora. Eu percebo que sejam coisas importantes para os treinadores, no apurar dos detalhes, no afinar dos pormenores, no tal “trabalho específico” que fez história e hoje já não se ouve, mas, sei lá, não estou a ver um crítico de cinema a analisar ponto a ponto a montagem de um filme, as muletas técnicas a que um actor recorre numa cena em particular e que, apesar de durar apenas trinta segundos, são fundamentais para aguentar a tensão da narrativa, a enunciar a lista completa de efeitos especiais ou a falar do tipo de película utilizada e da extrema influência da sua escolha na textura da imagem - e, se o fizer, não me parece que vá ter muitos leitores. Eu, quando vejo um filme, vejo um todo, passam pelos meus olhos tantos pormenores quantos os que a visão global abrange, sendo que uns me atraem mais, outros menos. Acontece-me o mesmo com a música: é perdendo-me no tecido sonoro que lhe encontro as particularidades, é deixando-me levar que me surpreendo com as miudezas e constato a importância capital de algumas delas. E assim funciona também, para mim, o futebol. Em qualquer uma destas artes, que eu não distingo enquanto tal, entendo o espaço como uma realidade basilar, imprescindível. Em qualquer uma delas, quem souber habitar o espaço tem mais possibilidades de sucesso. E, para se saber habitar o espaço, primeiro é necessário percebê-lo, ouvi-lo, senti-lo. O comentador de futebol, de igual modo, tem de perceber o seu espaço de intervenção, e às vezes não é o mais desenvolvido cientificamente o que melhor se sai nos comentários, o que dá mais prazer ouvir, como tantas vezes não é o jogador mais tecnicista, mais propenso à finta, mais agarrado à bola, o que encanta mais ver jogar e, menos ainda, o que melhor produz. Ao falar nisto lembro-me, por exemplo, de Vítor Manuel, um treinador que já passou pela televisão e foi então, na pele de comentador, vítima, ele próprio, de comentários agressivos e críticas arrasadoras, alegadamente porque qualquer um dizia o que ele ia para ali dizer. Ora, aí está a essência do futebol: é um lugar comum. Por isso é que todos gostamos dele. Todos nos revemos nele. Vítor Manuel era um comentador simpático que, além disso, percebia imenso de futebol e não puxava dos galões para o demonstrar, pensava antes nas pessoas que o ouviam, contextualizava as análises nos climas de tensão respectivos, nunca era leviano ou demasiado assertivo nos reparos a técnicos e jogadores, dando um verdadeiro exemplo de respeito pela profissão, pelos colegas de profissão e pelos espectadores. O mesmo vejo agora em Carlos Manuel. Não será por acaso que pertencem a um outro tempo e tipo de futebol, menos obsessivo, mais livre, menos fracturado e, numa determinada perspectiva, que não a das transferências ou a das transmissões, mais global. Tudo tem o seu lugar: a panorâmica e o grande plano. Mas não se perca de vista quem vê: quem vê, ou seja, o receptor último do futebol, aquele que nada tem de transmitir a outrém no momento em que usufrui de um jogo, quer incorporar o som da televisão como um elemento fundamental do seu jogo, não só pelo ambiente das bancadas como pelas achegas do comentador, mas quer incorporá-lo no seu próprio espaço, que não deve deixar de ser seu. Um árbitro sai-se bem quando não se dá por ele. Um comentador também. Mourinho, um amante do integralismo, há-de concordar comigo se eu disser que um bom comentador é aquele que, em vez de cortar o jogo às postas e dissecar bocado a bocado, se consciencializa do seu fluir, se deixa tomar pelo seu curso, se experimenta nele. Ou seja, também joga. Dentro e fora das quatro linhas.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

S. JOÃO

João estava são, mas não tencionava ir ao S. João. Era uma contradição quase evidente, pois, no Porto, só não vai ao S. João quem estiver em má fase, morto ou doente. Mas João tinha uma explicação assaz convincente: o seu cão, pouco paciente, não lhe daria paz em noite tão exigente. Uma solução era deixar o cão na vizinha, mas esta, tripeira dos quatro costados, queria também ir à festa, e sozinha, sem atrelados. O que fazer, então? Das tripas coração? Talvez não. Afinal, o S. João não valia tanto, para o João, como aquele espanto de animal. No entanto, mais do que ninguém, estava o dono seguro de que quem troca o pão, mole ou duro, e a sardinha na brasa por passar, com o cão, em casa, um serão distinto, sem um grãozinho na asa, não sabe o que perde, pois como isso não há nada, nem o chouriço, o vinho, verde ou tinto, a martelo, nem a própria martelada. Bailarico popular é o S. João, e só ficam a ganhar os que lá vão. Foi já resignado à desdita que o João, acabrunhado, teve súbita visita de uma cantora de fado. Ainda ela lhe dizia que viera de Lisboa rever uma velha amiga mas não a tinha encontrado, logo o João, animado, deu corda à imaginação, pensando se não seria a sumida rapariga a sua vizinha do lado. Era mesmo, pois então, e foi em tom de cantiga que o bom do João propôs à querida fadista condição oportunista para lhe dar guarida até ao regresso da amiga: tomar-lhe conta do cão. Ela ficou convencida e, pronto, missão cumprida, lá foi ele, feliz da vida, cumprir também a tradição.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

AMOR EM CÓDIGO

Imaginem um auditório cheio de gente. No palco, apenas um banco e uma mesa com um caderno ao alto, qual partitura. Pelos bastidores, entra em cena um homem que traz um computador portátil. Senta-se no banco e pousa o aparelho, já aberto, na mesa, entre si e a partitura. Distende os dedos de ambas as mãos, depois abana-os, folheia o caderno à procura da página que pretende e estica bem a coluna, recolhendo-se por breves segundos num silêncio aparentemente meditativo. Começa então a teclar, primeiro com ligeireza mas sem agitação, ou seja, de forma fluida e, ainda assim, tranquila, como quem desliza pela neve em ritmo de passeio; depois pára abruptamente, dando a sensação de ter visto uma coisa estranha, talvez assustadora, ou então digna de espanto, no imediato não é bem claro, mas rapidamente se percebe, pela cadência seguinte, sem dúvida traduzindo um diálogo feliz, radioso, a benignidade da surpresa. As emoções do público vão oscilando de acordo com os batimentos, tão expressivos que são quase cardíacos, como se a peça tivesse um coração e as mãos daquele homem saíssem dele para jorrar sangue pelo teclado, sangue quente e frio, sangue azul e vermelho, vida inteira. A certeza de que, seja qual for o guião, seja o que for a matéria prima, a obra que está a ser ali criada, ou recriada, não menos prima é, não menos magistral, ardente, impressionante, toma os espectadores como uma onda invasiva, de proporções gigantescas, uma presença irrefutável e avassaladora, mas nem por isso arrepiante, antes pelo contrário, produz neles um efeito tranquilizador, dota-os de uma serenidade perfeita, como se tudo o que em palco está a acontecer, embora transborde de realidade, de realidade sanguínea, de veracidade, de palpabilidade, lhes fosse absolutamente exterior. A actuação demora uma hora e meia, durante a qual há três intervalos. Em cada um deles, o homem repete o ritual das mãos, da procura das páginas e dos segundos de silêncio. No fim, com o rosto e a camisa encharcados, fecha o computador, levanta-se e, literalmente exausto, encara a audiência. Os olhos não o deixam mentir: ele não quer palmas, não quer “bravos”, não quer nada das pessoas que ali estão. Quer apenas ir embora. Mas fica, não priva o público do seu ritual mais caro. A explosão acontece, como reacção espontânea à injecção de amor, de inacreditável entrega, que o corpo do público, já todo um, acusa. O intérprete sai de cena e a sala vai-se esvaziando pouco a pouco, na proporção directa do calor e do cheiro. Finalmente, não sobra nada. É então que aparece um homem, outro homem, e diz, para ninguém: foram aqui reescritos excertos de livros de Tagore, Pessoa e Bolaño.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

SARAMAGO

Muitas vezes me questiono sobre o poder mágico da morte, a capacidade que ela tem de mudar a opinião dos homens uns sobre os outros, ou pelo menos de condicionar a expressão dessa opinião. Sempre que um insulto se transforma num elogio, tendo a considerar que, aos olhos do emissor de tão opostos juízos, a pessoa sobre a qual eles recaem fez alguma coisa de positivo, produziu um bem passível de a redimir do mal anterior, ou de o atenuar, vá lá. Penso, então, se a morte de alguém que repudiamos será, para nós, esse feito elevado à sua potência suprema, se a borracha que apaga a existência física de uma pessoa tem o condão de apagar também todas as memórias negativas que dela fomos acumulando, como um processo que prescreveu e em relação ao qual não há já nada que nos prenda. Talvez o raciocínio seja: este não chateia mais, portanto vamos poupar quem gosta dele a mais chatices. Eu, no entanto, não descarto a possibilidade de, em muitos casos, aqueles que gostam das pessoas que morrem preferirem ouvir, na morte dessas pessoas, serem-lhes atribuídas pelos outros as virtudes e os defeitos que os mesmos lhes atribuíram em vida, isto pensando, em primeiro lugar, no morto, que, enquanto vivo, teve uma conduta que, se não agradou a gregos e a troianos, foi porque não tinha de agradar, ou até porque não queria agradar. Daí que rasurar o que subjectivamente cada um de nós entende como pecado de uma pessoa na hora do seu falecimento possa equivaler a mutilar a memória dessa pessoa, a bombear o edifício que ela construiu em vida. Mais do que proferir banalidades e, por vezes, derramar hipocrisia, como cal, sobre o ser que se desmaterializa, talvez respeitá-lo seja tratá-lo na morte como ele fez por ser tratado em vida, reconhecer viva a sua marca, inteira. É que um homem pode ser parte do todo, mas há um todo que é parte dele - e o que parte dele, na morte, é o que menos lhe pertence.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

PARA TI

Hoje vou às palavras. Vou ver se estão boas, se estão fresquinhas, se vale a pena trazê-las e quantas. Gosto mais das palavras soltas, o problema é que as não há, ou então estão mortas, cortadas, mutiladas, como as flores que vemos deitadas na rua, à mercê de solas e rodas. As palavras também têm raiz, todas elas, e é uma pena arrancá-la, em qualquer caso, mas ainda assim prefiro fazê-lo a comprar palavras no mercado, arranjadas e metidas em bouquets para impressionar quem passa. O negócio das palavras, aliás, entristece-me, pelo amor que lhes tenho. Gostava de as ver crescer naturalmente, de as regar, de cantar para elas e com elas, de apreciar a forma como se desenvolvem e ganham novas cores, novos cheiros, novas texturas, novos sabores. Gostava de me perder num campo infinito delas, de fechar os olhos e de as ler nesse estado virginal, de as deixar ensinar-me a lê-las, de me ler nelas. As que mais encontro, porém, perderam a leitura, perderam até o leite, não se reproduzem, não se multiplicam, não se renovam, apenas se repetem, como cromos que se trocam por outros num mercado único, que nos quer ver a todos com a mesma caderneta. Mas depois há o amor, o sensor da surpresa, do desconhecido, o raio mágico que desperta com a palavra nova, solta, sem casa, e num instante cobre tudo o resto de sentido. É por ele que eu continuo a ir às palavras. Hoje trouxe estas. Pega, são para ti.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

JÁ TIVE E DEI-AS

Uma ideia é um perigo. É um sugadouro, puxa-nos pelos pés e lá vamos nós ter com ela, mesmo que tentemos levantar-nos e voltar a caminhar para a frente. As ideias são os argumentos do ego, chamam-nos à nossa dimensão corpórea, finita, destacada, parcial. Dizem-nos que o melhor é separarmo-nos dos outros, sermos melhores do que eles, por elas e com elas. Ocupam-nos de as trabalhar, de as melhorar, de as limar, a reboque dessa promessa, que, claro, nunca se cumpre. São sempre precisas mais ideias, ideias atrás das ideias, até à ideia final, da qual não fazemos ideia. O ideal seria deixar as ideias fazerem-nos, deixar os pensamentos terem-nos, deixarmo-nos possuir pelo princípio único de tudo o que existe. Talvez então a vida deixasse de ser, para nós, apenas uma ideia, apenas um perigo.

A DUPLA FACE DAS COISAS

É uma pena o cavalo ter um mastro tão grande e não poder bater punhetas. Por outro lado, ajuda-nos a perceber o problema da democracia.

terça-feira, 15 de junho de 2010

RELAX, DO IT

Oiço falar muito sobre a velocidade crescente da sociedade, sobre a cada vez maior dificuldade das pessoas mais velhas para acompanhar as mudanças, sobre a loucura em que se tem transformado o investimento na tecnologia, sobre a tendência de individualização que tudo isto acarreta, sobre todas as incertezas que o futuro convoca e que, tão depressa como esse futuro se torna presente, se convertem em desesperos, angústias profundas, pânicos, depressões, patologias sem fim. Ou seja, diz-nos o senso comum que estamos a criar inadaptados, que estamos a radicalizar o entendimento da selecção natural, que estamos, como numa corrida de espermatozóides, a disputar entre biliões uma vitória que será apenas de um, dois, três. Talvez seja esse o nosso propósito, talvez isso não diminua o papel que temos, talvez nesse vencedor haja um bocadinho de todos nós, dos que ficamos, talvez a masturbação seja, de facto, um massacre, uma chacina, mas talvez também o propósito do nascimento seja a morte, assim como o propósito da morte o nascimento. A evolução do mundo não diferirá, na essência, no princípio universal, da evolução do homem, isto é, também a humanidade, como qualquer ser, como qualquer corpo, humano ou não, social ou individual, terá um início, um meio e um fim. Simplesmente, a forma de a sociedade olhar para essas evoluções em pouco se equivale: encaramos a tecnologia como algo que deve estar sempre a desenvolver-se, a trabalhar progressivamente os próprios músculos, independentemente de ela, como corpo, ser jovem ou velha, independentemente de as cargas serem adequadas a quem ela serve; e encaramos quem ela serve como algo, ou alguém, que tem uma curva ascendente, um pico de estabilidade e uma curva descendente. Dizemos que a pessoa velha tem de ter calma, que não pode fazer certos esforços, cometer certos excessos, expor-se a certas emoções; já não o fazemos quando, em vez de uma história pessoal, vemos uma história social. Facilmente olhamos para a Idade Média e argumentamos que se vive hoje muito melhor, mas quando temos setenta anos reconhecemos que gostaríamos de ter vinte. Não haverá um ponto de contacto entre as duas situações? Não estará apenas a Idade Média num plano mais jovem de uma sociedade, de uma humanidade, que entrou em processo de acentuada decadência física, que já não apresenta os sinais de frescura de então, que já não tem guerreiros como então, que também já não tem a folia, o instinto, a loucura, o radicalismo, a irrequietude, a irreverência, a impertinência, a irracionalidade, tudo coisas tão próprias da juventude, de então? E não poderíamos, hoje, como tantos velhos saudáveis o fazem, medir as nossas tensões, olhar para o nosso corpo, meditar sobre a condição em que estamos, e concluir que, porventura, o melhor seria aceitar o envelhecimento, aceitar que talvez nem as células mais novas do nosso organismo, nem os elementos mais recentes da nossa espécie, nem as mais vibrantes forças do nosso planeta, venham a beneficiar desta aceleração contínua, desta passada galopante, deste TGV mais rápido que a própria sombra, aliás tão rápido que o mais provável é deixar de haver carris para ele? A velhice, a par do declínio físico, traz uma capacidade mental que, sinceramente, não penso estar a ser globalmente usada, sequer globalmente reconhecida. Temos desprezado, justamente com a obsessão da rapidez, que, ao contrário de trazer melhor qualidade de vida, mais reflexão, mais autoconsciência, faz do tempo um bem de luxo, cada vez menos público, cada vez mais distante, a necessidade de sair deste mundo-comboio e ponderar no propósito da viagem, no destino, que é, naturalmente, o princípio de tudo, o quem eu sou, o para onde vou, a inquietação que tem sempre de estar connosco e que Barack Obama, por exemplo, num dos seus livros, assume tê-lo acompanhado ao longo da escalada política, em forma de estalo para acordar, como quem nunca se esquece de perguntar: Porque é que eu me meti nisto? Quais foram os pilares da minha luta? Não terão, por acaso, já caído? Se sim, o que estou eu a fazer ainda aqui? E até onde isto me levará? Muita gente tem, de resto, expressado confiança no líder americano, meteoricamente transformado por boa parte do mundo num líder supra geográfico, humano, numa espécie de maquinista global. Haverá nisso aspectos positivos, como desde logo a identificação em Obama de uma série de qualidades de que o planeta político carece, de uma série de valores que, precisamente, a febre acumuladora, a voracidade e a ganância foram impunemente pisando, como uvas numa vindima cujo vinho, contrariando o chavão da igreja, parece pouco ser sangue de Deus e muito dos homens, mas é preciso que essa dependência, que essa esperança no alheio, seja acompanhada de uma interiorização efectiva, e prática, desses mesmos valores, nem que ela passe, paradoxalmente, por uma negação dos modelos políticos, económicos e sociais que hoje vigoram, por uma reconstituição dos padrões de vida, começando pelos de cada um, que, para isso, terá necessariamente de se recolher um pouco mais a si, de encontrar tempo, lá está, para meditar, para se autoconhecer, para valorizar os ditames dos clássicos, para ouvir e ver, com calma, se lhe faz sentido o que lhe dizem os mais velhos, para reunir todos os componentes do seu ser numa mesma família, para se desfragmentar, para se sentir uno, inteiro, e para então se olhar ao espelho do mundo, da sociedade, da humanidade, e verificar se se reconhece nessa imagem e o que pode fazer, na sua pequena ou grande esfera de acção, para se reconhecer, para gostar mais do que ela lhe devolve. Se for o caso, deixemos mesmo a tecnologia ir aonde quiser. Não a deixemos é obrigar-nos a ir com ela, que é o que acontece hoje. Saiamos na próxima estação. Se há uma série de tecnólogos a querer digitalizar o homem, a querer passar para o lado de lá do espelho todo o nosso sangue, eles que se valham do voluntariado, que não tenham medo de tomar as suas decisões e não nos impeçam de seguir outras vias. Há quem não queira ser cobaia. Eu, por exemplo, posso não saber para onde vou, mas sei por onde ir. E não tenho pressa.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

POR TUDO E POR NADA

Pergunto-me como estarás, se bem, se mal, se em sacrifício ou em paz, se confusa, se clarividente, se pensarás e em quem, em mim, em ti, em toda a gente ou em ninguém, se estarás a rir ou a chorar, ou simplesmente a meditar, se sentirás tristeza ou alegria, se dentro de ti será noite ou dia, se me quererás ainda ou nunca tanto assim, se nos teus sonhos chamarás por mim, se precisarás de alento, se terás vontade, se respirarás bom vento ou tempestade, se serás presente aí e agora, se desejarás depressa vir embora, se confiarás no espaço imenso, se te agarrarás ao corpo denso, se acolherás a lei da impermanência, se te faltará a paciência, se na doutrina perderás o olhar, se da piscina avistarás o mar, se ficará tranquila a tua mente, se rebentará como um vulcão ardente, se o amor de ser será maior que o desejo de saber amar melhor, se te sentirás em comunhão com tudo, se tomarás silêncio por barulho mudo, se rezarás o terço para travar a ânsia, se entenderás o universo como uma substância, se te irritará o deslumbramento alheio, se decidirás deixar a experiência a meio, se beberás água na eterna nascente, se farás da mágoa uma terna semente, se descobrirás o sentido da vida, se a senti-lo comigo estarás decidida.

PONTO INFINAL

Fico a ver a minha respiração bater as asas, fico a vê-la penetrar no infinito e deleitar-se com o voo sem rumo, sem ordem outra que o prazer de se sentir, de se diluir no espaço, de se apagar. Eu sou a minha respiração tanto mais quanto ela vai para longe, e se perde, e eu morro sem morrer. Aí sou o silêncio, o nada cósmico, a ausência - e, nessa milagrosa consciência, vejo-me fonte de vida, perpétuo nascimento, eternidade.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

AO MEU AMOR

O meu amor foi para longe, descobrir-se, experimentar-se, viajar sozinho. Foi a medo, ou meio a medo, por não saber aonde vai dar esse caminho. Eu disse-lhe para ir em paz, para não ter medo, para ser capaz de confiar no seu próprio segredo. O seguro morreu de velho e, mesmo no escuro, que melhor ao amor faz do que olhar-se ao espelho? É um mergulho suave, um doce grito, como se fosse um voo de ave no infinito. Quando for hora de voltar, talvez o meu amor saiba melhor o que é amar.

terça-feira, 8 de junho de 2010

FREIOS, PORCOS E MAUS

Devia haver um Dia Mundial do Desenfreado (pela piada fonética, até merecia ser feriado), em que todos despejássemos indiscriminadamente o que trazemos dentro, o lixo orgânico e anímico no mesmo saco, no saco do Dia. Eu, cá por mim, vou fazer de conta que é hoje e, daqui para a frente, o que este texto contiver já terá de ser lido à luz dessa ausência de critério. Normalmente, o que me acontece é pegar numa ideia mínima e desenrolá-la, como se faz à massa de rissóis. Só que depois não vou lá com os copos, aliás, se lá fosse com os copos não escreveria nada de jeito, ou às tantas até era assim que arranjava maneira de o fazer, pois quem sabe se as minhas coisas são ou não de jeito é quem as lê, incluindo eu quando assumo esse papel. Nesta última frase, confesso já, quebrei as regras, porque onde escrevi “assumo esse papel” pensei antes escrever “o faço”, mas como tinha escrito, um pouco acima, “arranjava maneira de o fazer”, achei melhor não repetir o verbo. Mas continuemos: não vou lá com os copos, em vez disso junto a massa toda e chapo-a no blogue, menos bruta, concerteza, mais espalmada, mas para vocês fazerem dela o que quiserem. Porque é que me sai das mãos, ou do rolo, menos bruta do que a ele chegou, eis a questão. Em todo o caso, é uma questão que hoje, por ser, para mim, Dia Mundial do Desenfreado, não poderei explorar, ou melhor, poder explorar até posso, mas não poderei esclarecer, porque não garanto coerência ou consistência na abordagem, ou então não seria Dia Mundial do Desenfreado e sim Dia do Freio, a que levanto desde já o dedo do meio, porque esse é todos os dias. Não gosto, no entanto, e aqui o assumo, de reconhecer que corrijo o que escrevo, pois nisso vejo a vontade de vos agradar, de agradar a quem não conheço, de agradar a nada, de degradar. De degradar, sim, se eu não sei o que é bom para vocês e, pelos vistos, também não sei o que é bom para mim e, mesmo assim, corrijo o que escrevo, correndo o risco de corrigir mal, aliás, quase não correndo o risco de corrigir bem, porque de certo modo estou a tapar os olhos com uma peneira, estou a peneirar esse ser cheio de lixo que reclama, hoje, porque decidiu tomar para si um imaginário Dia Mundial do Desenfreado, despejá-lo, ainda por cima em cima de vocês, que não só não têm culpa nenhuma como ainda se predispõem generosamente a ler coisas que eu escrevo para vos agradar sem sequer me dar ao trabalho prévio de vos conhecer e assim saber o que vos agrada. Vou-vos dar um exemplo, e para vo-lo dar terei de me valer de um texto pré-escrito, que contudo não prescrevo, pois surgiu sob a lógica criteriosa da correcção que hoje renego. Era um texto sobre as árvores, fi-lo ontem, e rezava assim: “Há segredos que são para ficar entre mim e as coisas. Verdades ou ilusões, não sei, mas são intimidades sensíveis, diálogos fundos, delicadezas livres que, no seu estado virginal, não resistem à virulência da palavra. São eles quem mo diz, com recém-nascida sensatez, quando o ego me imbui de uma febre de partilha que só pode traduzir, nunca revelar. É como se um feto me pedisse para suster o anúncio da sua vinda ao mundo, para lhe dar mais tempo, para o deixar crescer. Hoje, por exemplo, procurei escrever sobre a minha relação com as árvores, sobre o sereno respeito que me inspiram todas, mesmo as mais desgrenhadas, mesmo as mais secas, mesmo as deitadas abaixo. Há uma dignidade nas árvores que não mora nas coisas do mundo, que não se corta, que não se mata, que perdura como segredo eterno, integridade pura, e que se nos revela apenas nesse esplendor impalpável, chamariz de todos os raios, de todos os ventos, de toda a água, de toda a terra. As árvores são antenas de vida com ossos de morte, faróis de abrangência. O seu silêncio, testemunhando as várias vestes do tempo, é a escola de canto dos pássaros”. Aqui chegado, tomei consciência do que tinha escrito, da cadência pegajosa do que se me prefigurou como ribeiro transparente e que, já a meio da tarefa, deixou de o ser, ou não houvesse eu escrito “Hoje, por exemplo, procurei escrever sobre…”, evidência da morte de uma crónica anunciada, e que devia ter ficado por aí, pelo anúncio, abrenúncio, ou então isto, encaixada, como lixo reciclado, numa prosa toda ela lixeira, toda ela aterro, a prosa em que hoje aterro, a pista inerentemente aérea do Dia Mundial do Desenfreado. De repente, no decurso de tão emproado tributo ao arvoredo, imaginei-me a fazer uma sopa de legumes e a deitar para lá um caldo knorr, que era, bem vistas as coisas, o que eu estava a fazer à minha escrita, pois, quando a provei, e não aprovei, soube-me a Teixeira de Pascoaes, a um Teixeira de Pascoaes em cubo, como as cebolas do Pingo Doce, o que para mim teve, claro, um travo amargo, não porque não goste do escritor, bem pelo contrário, acho-o sublime e considero até a sua obra emblemática, Marânus, o melhor poema que li na vida, mas precisamente por isso, por achar que ele, sobretudo ele, não merece ser enlatado, não merece ser empacotado, não merece ser congelado e vendido assim, aos bocados, como as tais rodas que os copos desenham na massa de rissóis e que eu próprio para mim rejeito, por sentir que a minha escrita, infinitamente mais presa e ferrugenta do que a dele, sabe melhor em bloco, ou em blogue, ou seja lá como for, desde que inteira, desde que corrida, desde que fluida, desde que viva, desde que livre, desde que desenfreada. Dito isto, fico contente por não ter mais gente para atender no guichet da garganta, que é como quem diz mais disparates para escrever, que é como quem diz ainda mais lixo para despejar. Será? Claro que não. O lixo, em mim, não tem fim. Mas este texto, felizmente para todos, tem. Como vêem, há fins que justificam os freios.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

SER SISTEMA OU SER TEMA DO SIS

Para mim, uma pessoa honesta é uma pessoa que procura a honestidade, que está preparada para viver sem objectivos, ou melhor, que está preparada para viver com objectivos objectivamente utópicos, impalpáveis, imateriais. Essa pessoa sabe que os fins preexistem nos meios e, por isso, tende a dedicar-se a cada momento como se ele fosse o primeiro e o último, tende a não marcar encontros, tende a não desejar outra coisa que o não desejar. Essa pessoa liberta, desprende, aprende. Vem isto a propósito da minha experiência de pai, de pai recente, e das dificuldades com que me tenho debatido para afugentar doutrinas, dogmas e conceitos sociais sobre o exercício da paternidade. São moscas, ou piores que moscas, quando atacam a sã convivência entre mim e a minha filha, quando interferem na forma como eu encaro as suas birras, as suas brincadeiras, as suas recusas, os seus mimos, as suas exigências, quando me incitam a representar o papel do mais forte e a obrigá-la a fazer o que quero, quando me levam, portanto, a mentir ao mais fundo de mim, como quem fecha os olhos a si próprio, como quem fecha os olhos à honestidade. Isto acontece, claro, porque mesmo uma pessoa honesta, ou principalmente uma pessoa honesta, tem dúvidas, e, quando as potenciais consequências da dúvida se projectam sobre quem a tem, não é difícil correr o risco, já que afinal a vida de uma pessoa que procura a honestidade é feita de erros e acertos, de passos seguros e passos em falso, mas quando essa dúvida se apresenta como um fio eléctrico que é preciso cortar, de entre dois, para desactivar uma bomba, sendo que a voz íntima de quem escolhe lhe diz para contrariar, nessa escolha, a voz pública de todos os manuais, e os efeitos de um eventual engano recaem sobre outro ser, ainda por cima, no caso a que me reporto, um ser que não deixa de ser a razão de ser do ser que escolhe, é preciso ter coragem para manter a honestidade, não a honestidade de se reconhecer que não se teve coragem, embora também essa, me parece, seja compreensível, ou não condenável, face a todos os condicionalismos que, qual guilhotina, abrem um impecável sorriso sádico por cima da nuca do candidato a réu, mas a honestidade que é honesta para com ela mesma, como o amor de quem ama, acima de tudo, o amor. Eu já muitas vezes tive de reconhecer que me faltou a coragem e, para ser honesto, continuo a ter. Sinto, aliás, que assim será até ao meu último sopro. Mas sei, também, que cada vez mais confio no que não se vê, que cada vez mais percebo a inutilidade de nos agarrarmos às coisas sólidas, que cada vez mais prescindo do tronco de madeira pela corrente do rio, e que, por isso, cada vez menos quero obrigar, moldar, doutrinar. Tenho para mim que o processo educativo é como uma ampulheta. Quando a criança nasce, os pais viram-na (não a ela, isso é a parteira) ao contrário, deixando a partir daí a areia correr, ou seja, a sua responsabilidade esvaziar-se, transferir-se grão a grão para o novo ser, que assim se formará progressivamente mais livre. Não se confunda isto com lavar as mãos do trabalho mais encantador que aos animais foi confiado. O que eu sinto é que, para se saber o que um recém-nascido pede, um pai tem de, sobretudo, estar disponível para ouvir, ver, apalpar, provar, cheirar, que o mesmo é dizer sentir, libertar os sentidos, no fundo aprender com os próprios sentidos como lidar com o seu bebé, olhar para cada um deles como um bebé e senti-lo, sentir-se, sentir os sentidos, pois também eles um dia foram bebés e, estou convencido, na maior parte dos constituintes desta sociedade humana foram bebés logo condicionados, logo dirigidos, logo censurados, logo castigados, logo obrigados, logo atrofiados, logo proibidos. E todos sabemos o que é um sentido proibido. É um caminho que se perde na estrada da vida, de uma vida que não nos pertence por direito, nem sequer a nossa, quanto mais a de outro. É um beco sem entrada, é um nado-morto, é um destino destinado a não ser, é um contra-senso. Estou em crer que, com menos sentidos proibidos e, já agora, por inerência, com menos sentidos obrigatórios, com mais liberdade de trânsito, com menos medo de existir e circular, de brincar, experimentar, fazer e acontecer, a vida em sociedade seria mais plena, mais produtiva, mais surpreendente, mais viva, teria mais possibilidades de se ver ao espelho, de se conhecer a si mesma e, nesse sentido, que é tudo menos proibido, de procurar a honestidade. De ser honesta. Se acham que isto é advogar a anarquia, para mim é confiar na vida, na vida das pessoas e de todos os seres. É confiar nos valores, no amor, na paz, na harmonia, na gratidão. É confiar na verdade, no belo, no bem. E uma coisa é certa: só confia quem tenta. Isto não é, pois, um atentado à democracia, é bem o contrário, é um tentado à democracia, é uma declaração de disponibilidade para testar o sagrado sistema, para tentar ir além dele, para desbloquear o curso do rio, tirar o tronco de madeira, deixar fluir o sangue nas veias do mundo e não para fora das veias do mundo. A escolha é de cada um. Ao menos nisso, sejamos honestos.