segunda-feira, 21 de junho de 2010

AMOR EM CÓDIGO

Imaginem um auditório cheio de gente. No palco, apenas um banco e uma mesa com um caderno ao alto, qual partitura. Pelos bastidores, entra em cena um homem que traz um computador portátil. Senta-se no banco e pousa o aparelho, já aberto, na mesa, entre si e a partitura. Distende os dedos de ambas as mãos, depois abana-os, folheia o caderno à procura da página que pretende e estica bem a coluna, recolhendo-se por breves segundos num silêncio aparentemente meditativo. Começa então a teclar, primeiro com ligeireza mas sem agitação, ou seja, de forma fluida e, ainda assim, tranquila, como quem desliza pela neve em ritmo de passeio; depois pára abruptamente, dando a sensação de ter visto uma coisa estranha, talvez assustadora, ou então digna de espanto, no imediato não é bem claro, mas rapidamente se percebe, pela cadência seguinte, sem dúvida traduzindo um diálogo feliz, radioso, a benignidade da surpresa. As emoções do público vão oscilando de acordo com os batimentos, tão expressivos que são quase cardíacos, como se a peça tivesse um coração e as mãos daquele homem saíssem dele para jorrar sangue pelo teclado, sangue quente e frio, sangue azul e vermelho, vida inteira. A certeza de que, seja qual for o guião, seja o que for a matéria prima, a obra que está a ser ali criada, ou recriada, não menos prima é, não menos magistral, ardente, impressionante, toma os espectadores como uma onda invasiva, de proporções gigantescas, uma presença irrefutável e avassaladora, mas nem por isso arrepiante, antes pelo contrário, produz neles um efeito tranquilizador, dota-os de uma serenidade perfeita, como se tudo o que em palco está a acontecer, embora transborde de realidade, de realidade sanguínea, de veracidade, de palpabilidade, lhes fosse absolutamente exterior. A actuação demora uma hora e meia, durante a qual há três intervalos. Em cada um deles, o homem repete o ritual das mãos, da procura das páginas e dos segundos de silêncio. No fim, com o rosto e a camisa encharcados, fecha o computador, levanta-se e, literalmente exausto, encara a audiência. Os olhos não o deixam mentir: ele não quer palmas, não quer “bravos”, não quer nada das pessoas que ali estão. Quer apenas ir embora. Mas fica, não priva o público do seu ritual mais caro. A explosão acontece, como reacção espontânea à injecção de amor, de inacreditável entrega, que o corpo do público, já todo um, acusa. O intérprete sai de cena e a sala vai-se esvaziando pouco a pouco, na proporção directa do calor e do cheiro. Finalmente, não sobra nada. É então que aparece um homem, outro homem, e diz, para ninguém: foram aqui reescritos excertos de livros de Tagore, Pessoa e Bolaño.

Sem comentários: