sábado, 30 de outubro de 2010

O PROBLEMA

Durante a vida experimentamos várias formas de lidar com o mesmo problema, mas muitas dessas formas são, simplesmente, formas de não lidar com o problema. O problema é a vida ela própria, somos nós - ou, melhor ainda, somos os nós, os nós que somos, cada um de nós.
Hoje sento-me aqui para escrever mais uma forma e não mais do que uma forma, mas uma forma de lidar com o problema. O meu problema.
Não sei quando me dei conta de que tinha um problema, mas provavelmente foi à nascença, ou então não teria desatado a mamar, a chorar, a espernear, a lutar com unhas e sem dentes. Hoje leio pessoas que falam poeticamente sobre a morte, sobre a primeira vez que viram a morte, sobre a incompreensão da morte e a recusa em confrontá-la, em chegar perto dela, em sentir-lhe o cheiro, quando esse cheiro é o mesmo da merda e do leite e a morte é, afinal, o mote da vida.
Mamar, andar, falar, estudar, trabalhar, casar, procriar para que outros mamem, andem, falem, trabalhem, casem e procriem - eis a puta da vida tal como se nos apresenta. Pois eu digo: hoje sei que a minha vida não é isto. Não é só isto, não é necessariamente isto. A minha vida é a minha vida. Por entre essas etapas todas a que não renuncio, a minha vida é também romper a placenta de culpa que me precede.
Entre as formas que já experimentei de lidar com o meu problema encontram-se vários ismos. Todos eles foram sombras que se me descolaram do corpo a cada pôr-do-sol. A cada morte. Hoje não tenho um ismo para dar. Tenho sentimentos intensos, tenho oitos e oitentas, tenho vida em bruto.
Este é o primeiro passo para uma pessoa como eu lidar com o problema. É assumi-lo. É pô-lo cá para fora, dar-lhe luz, dá-lo à luz. Todo o tempo gasto a experimentar formas de não lidar com o problema é tempo pré-Natal, é cadeia genética no sentido mais prisional do termo. Lapidar o diamante exige tê-lo.
Hoje é a hora de o meu problema sair à rua. De sair inteiro, impróprio para consumo. É o dia de vomitar o mundo e dizer que já o trazia dentro, este mundo, há colhões. É o momento de trabalhar para um outro mundo, com as competências todas de quem o conhece como a palma da sua mão, cansada de bater punhetas.
A crise e a depressão acompanharam-me o crescimento - essas, sim, sombras implacáveis -, foram o meu mundo, o meu segredo. Hoje o mundo dos outros conhece-o, estou nu. Tão nu como esse mundo aos olhos de si mesmo. Somos tão verdade com verdade como as batatas são batatas com batatas. O problema, pelo menos o meu, está objectivado.

Portugal é um País, o nosso País. Os mercados são, hoje, o mundo. E o país Portugal cresce ou decresce a mando desse mundo. Porquê? Porque Portugal não existe. Portugal está em coma num leito límbico, com os pés algemados por D. Sebastião e as mãos por Salazar, espelhos virados um contra o outro, reflectindo a infinitude, o cronismo, a inescapabilidade, para o caso de Portugal querer acordar do coma.
Em cada empresa, em cada emprego, a generalidade dos portugueses não atravessa nem um nem outro desses espelhos. São como esquinas à noite. A verdade é que, não o fazendo, a mesma generalidade dos portugueses está a ser atravessada por eles, em cada casa, em cada desemprego.
Chegou, pois, a hora do salto quântico. Aquilo de que sempre estivemos à espera surge com a imagem que menos esperávamos. Valham-nos as leis da física. O corpo, o nosso corpo, o meu, o teu, o dele, o nosso, o vosso, o deles, vai ter de se sentir em todas essas dimensões, únicas e múltiplas, pessoais e universais, o melhor que possa e saiba, e mexer-se, andar para a frente com os seus próprios pés.
Em menos de nada, o segredo do País vai estar tão cá fora como o meu segredo. Um novo espelho nascerá da fricção dos outros dois, como fogo vindo das pedras, e nele poderemos rever-nos, juntos, os que até hoje nem em separado se reviam.
Durante anos, uns, e décadas, outros, muitos de nós estiveram mergulhados em drogas, legais ou ilegais; durante esses anos, esses nós sentiram que o seu mundo estava doente, por não encaixar no mundo dos outros. Hoje, os mesmos nós podem saber que o mundo dos outros é, afinal, o mundo de uns quantos, poucos, muito poucos, que não querem encaixar no nosso mundo. Por isso é que o mundo, o mundo de todos, está em crise.
Chamem-me irresponsável, bipolar, o que quiserem. Sou isso tudo e mais alguma coisa. A minha forma de lidar com o problema é cada um de nós mudar o paradigma, virar o disco, venha quem vier: irmos para dentro cá fora, deixarmos de nos adiar em antidepressivos e sermos nós os antidepressivos do mundo. Cada um de nós.
Talvez assim se desatem os nós e o meu problema seja o teu e o dele e assim sucessivamente até, quem sabe, deixar de ser um problema.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

RENÚNCIA

Uns dias bem, outros mal. Quão mentiroso é o horizonte! Quão aliciante e persuasivo se nos mostra naqueles dias, quão angustiante e negro se nos revela nestes. A paz é das montanhas e dos vales, dos medos e dos amores, ela habita toda a forma. Para ser minha também, falta que eu com ela aprenda essa adaptabilidade, essa renúncia infinita. Sentir, eis a questão. Sentir tudo. Abrir o peito às flores e às balas, deixar que o destino penetre a carne e a queime de toda a sensação, permitir que o corpo seja o altar onde a dor e o prazer juram e geram amor eterno. Fazer a parte que me compete, usar bem o meu testemunho, abrir caminho para quem vem depois. Viver no paradoxo como se fosse chão firme, que o é, afinal.
Escrever, o acto de escrever, uma das infinitas formas de sentir, tem sido para mim um claro exemplo disso: escrevo quando sinto que preciso, quando a alma se agita e quer que lhe conte histórias, quando estou por baixo; se assim não for, vivo. Escrever é, pois, para mim, uma forma de legitimação daquilo que procuro: viver. Como se esse grande propósito, assumido na sua plenitude, carecesse de sentido. Como se a vida, ela própria, não tivesse sentido. Se não tem, para que vivê-la? Mas, lá está, escrever é, para mim, a renda da casa. Deus deu-me esta moradia, este corpo animado, esta oscilação perpétua, com uma ordem própria que não domino mas, passo a passo, vou descobrindo nas coisas, nas vagas dos mares, nas fases da lua, no intangível jogo de espelhos que é o mundo, do poço mais fundo ao abismo do céu.
Passo dias de sonho, vivendo. Vou ao sabor dos passos que são e não são meus, num ritmo etéreo mas não aéreo, uma espécie de batida silenciosa. Os meus pés falam com o chão, conversam ora eu ora tu, demoram-se em passeios tão verbais quanto sexuais - e, em ambos os casos, fecundos. Acham que eles se preocupam com o destino? Nada. Ocupam o tempo até que alguém por eles, há quem diga que eu, decida interromper o coito. Coitado de mim: mais e mais culpa. Aonde quer que vá, o que quer que escave, encontro sempre culpa. Nos dias bons, agradeço-a como um cão lambe o dono por um novo osso, consciente de que atrás dele mais vida se abre, mais água corre entre o fulgor e o desespero; nos maus, ajoelho-me perante ela, todo rendição e revolta, resistindo a entregar-lhe a minha ausência de sentido, como quem resiste a deixar um filho seu em porta alheia.
Pois é. É que também passo dias de pesadelo, sonhando. A coincidência, e aparente contradição, entre sonho e pesadelo, entre viver e escrever, entre dia e noite, atesta e ela própria espelha o tal jogo de espelhos que é a existência, pelo menos a minha. Os espelhos, os que socialmente se convencionaram como tal, os que registaram a patente dessa condição, mostram a nossa imagem invertida, mas na vida tudo é nosso, tudo nos diz respeito, tudo e nada, a verdade e a mentira. Daí que o inverso de mim seja eu também. Daí que os dias bons sejam maus também, e vice-versa. Daí que escrever seja também viver. E daí, talvez, eu escrever. Não fora essa consciência e dificilmente o faria, porque não gosto de ir pelos meus dedos, não acredito neles enquanto entidade destacada do todo. Para mim, o cérebro de cada um é como um neurónio do universo: sozinho nada faz, tem de chocar, tem de criar faísca, ir na corrente. Só que, se me é mais fácil, por assim dizer, libertar o cérebro quando ando na rua, quando nado, quando medito, quando como, enfim, quando não me atenho a um ofício mental, sinto extrema dificuldade em consegui-lo quando escrevo.
Já muito pensei sobre isto, claro. O que é, aliás, mais um paradoxo, porque ao pensar estou a instrumentalizar o cérebro. Mas também já muito meditei sobre isto. Pensar e meditar são, no meu modo de sentir actual, coisas mais ou menos tão diferentes como viver e escrever. O pensar tem o seu teatro na roda mental, requer um departamento para existir, recolhe-se do que não lhe convém. O meditar absorve tudo, mesmo o pensar, até que este desapareça espontaneamente por defesa própria. O processo de escrita tem-mo mostrado, desde os dias em que fincava os olhos na folha branca e como que a inquiria, tentando extorquir-lhe uma mancha, um palmo de cadastro, para que nele pudesse lavrar, e ela, com a candura dos inocentes, me devolvia o olhar, sem mais em sua companhia que a frustração de ser nada o meu reflexo, de estar trancada a minha alma. De então para cá o que mudou foi a mudança, a alma ela própria de mim e de tudo; foi então o mundo, toda a vida, toda a escrita. Foi o sentir a dita frustração e começar a amá-la como o fio de sentido que me estava destinado puxar, o pedaço de vazio que me era levado à boca. Foi a noção de que o meu caminho se desenhava, afinal, na sombra do que eu havia desenhado para si mesmo, no inverso da imaginação, da conjectura, do pensamento, do sonho. Comecei a perceber que, em vez de escrever, o meu destino era ser escrito. E que melhor paradoxo? Li no destino que o tinha de escrever.
Mais do que me confrontar com a responsabilidade de palmilhar rumo a Deus, isso contribuiu decisivamente para que pousasse em mim próprio, como uma semente que inicia a sua aventura na fertilidade macia de um terreno que sempre a desejou. Continuei a passar uns dias bem, outros mal, mas a minha consciência do bem e do mal mudou desde que os enquadrei como dores e prazeres de crescimento, como mensagens provenientes da raiz que entrara por mim adentro com a firmeza etérea da luz matinal. Nem sempre as leio com a devida serenidade. Às vezes a sensação é tão intensa que me convoca inteiro, qual bombeiro apanhado na teia do fogo, vitimado pela violência das chamas. Mas mesmo dessas mortes saio vivo, com uma sensação de integridade mais ampla, como se o que deixei na batalha não me pertencesse.
Pode, compreendo, este caminho parecer inclemente a quem me viu e quem me vê. Posso dar a ideia de me ter tornado num egoísta insensível, num puro sangue que, apontado à sua própria loucura, esquece a poeira que levanta. A verdade, porém, tanto quanto a minha lucidez a sabe agora decifrar, é que me leio cada vez mais como a um livro, confiando ao abismo da liberdade a memória de cada página que viro, testemunhando a expansão da consciência por cada nova página em que mergulho. Se me perguntarem com que direito, assumirei não saber verbalizá-lo melhor do que deixando vir à luz estas linhas tortas, na fé sincera de que o contemplarão. Se assim for, a minha gratidão não caberá em nada, pois brilhará no meu íntimo a certeza de que o amor também se escreve.

O DESEJO

Nada expressa com a eloquência do desejo os limites do pensamento, como nada expressa com a eloquência do filho os limites do pai. O desejo nasce atado às expectativas de quem o criou, não podendo o abrir dos seus olhos dar-lhe a ver a liberdade essencial que o constitui. O meu pensamento formula um desejo e atém-se a ele, à sua sorte, prende-se a algo que lhe escapa, a uma magia cujo truque desconhece, ficando a glória ou a revolta do pensador suspensas do cumprimento ou da frustração desse desejo. Até que o pensamento se dilua ele próprio no céu da vida, muitos desejos partirão para lá como seus enviados, não causando surpresa que uns lá não cheguem e outros de lá não voltem. É preciso crer para ver, e crer mais não é do que viver. Crer é amar. O desejo representa a incapacidade, o medo de crescer, a recusa em abrir os olhos da alma. Daí que a expressão “matar o pai” adquira tanto significado na psicologia: matar o pai é justamente matar o desejo a que cada filho nasce agarrado.
Então, se em vida todos somos filhos e pais, por que haveria o pensamento de dispensar essa ruptura? E o que acontece quando o pensamento se livra do desejo que o agrilhoa? Ele voa consciente de si mesmo, ele plana e bate as asas consoante a eternidade, pois tudo se compacta para ele em cada momento, fazendo dele mesmo esse tudo, mostrando-lhe que ele é tudo e tudo pode, incluindo deixar de o ser. E ele deixa, claro. Ele deixa até que novo e novos voos o enraízem à liberdade, até que o amor de pensar em cada um afague no seu colo o medo do que cada um pensa de si, como uma mãe recebe, extenuada e feliz, o recém-nascido que tanto lhe custou dar à luz, depois de arranques e recuos, de conquistas e perdas, de ânimos e desesperos. Creio, aliás, que se não existe um equivalente materno da expressão “matar o pai” é porque a mulher, passando pela experiência de ser mãe, de conceber, desmonta a mecânica do desejo, encarna o sentido da vida e percebe que vale sempre a pena cobrir de amor e gratidão a nudez do sofrimento. Dar à luz é, pois, tirar às trevas, é salvar. Libertarmo-nos dos nossos desejos, aceitarmos plenamente o que nos oferece a experiência de existir, é dar à luz em cada instante. É darmo-nos à luz.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O SOFÁ DE PEDRA

A história que vos vou contar podia sair-me das mãos numa rajada, mas eu não nasci para ir directo aos assuntos. Percebi isso quando perdi a virgindade. Foi estranho. Os meus amigos tinham-me pressionado tanto a invadir a minha namorada que, na hora h, parecia que o meu pénis ia às finanças. Claro que ejaculei precocemente. O que vale é que não culpei o acto em si, culpei-o em mim, isto é, compreendi que sem sol não se faz praia, que cada prazer pede o seu clima. Com essa namorada, porém, o destino estava escrito. Como Deus, quando fecha uma porta, abre uma janela, o mesmo destino quis que, antes de conhecer a minha terceira namorada (e não a segunda porque à segunda nem as mamas lhe apalpei, apesar de ter andado dois meses com ela), eu descobrisse um sítio mágico, hoje dir-se-ia um spot, numa zona rochosa da praia de Cabedelo, para lá do Hotel Casa Branca, quem vem do Porto. Era um calhau talhado pela bravura do mar em forma de sofá ou chaise longue, um presente romântico do grande arquitecto para a minha pequena pessoa, como a lembrar-me de que nem tudo estava perdido. Reconheci logo ali um potencial extraordinário. E, assim que pude, numa noite cravejada de estrelas, levei lá a rapariga que, entretanto, me entrara pelos olhos. A conversa, a brisa costeira, a aura de altar impossível, com um véu lunar a sair-nos dos pés, na incerteza da água, para um horizonte também ele indefinido, mistificaram o beijo que acabaríamos por dar, certos de que haveria de ser o primeiro de muitos, como foi, e certos de que haveríamos de ser os últimos um do outro, como não fomos, nem sequer naquele sofá. Se é verdade que os casos de amor deixam sempre marca, a rocha ergonómica nunca se viu beliscada - também, quem é que ia beliscar uma rocha… - na sua infalibilidade como acendalha da mais crepitante das ilusões. Pelo tempo fora, tive ali a boca de cena perfeita para o ritual iniciático da paixão, uma espécie de zona (pouco) franca entre o divã e o confessionário, onde me encontrava sempre com cada nova mais-que-tudo, como num casting mútuo, de olhos apontados ao filme mais estrelado, a passar desde o princípio das noites na tela infinita. Um dia, ao cabo de muitos anos, dei-me conta de que a marginal de Gaia estava a ser substancialmente alterada, para que o usufruto de toda a linha de praia ganhasse qualidade, quer na perspectiva de quem passa, de carro ou a pé, pois a proposta era melhorar as estradas e construir um percurso pedonal de madeira até Espinho, quer na de quem fica, uma vez que iria ser ampliada a oferta de bares e esplanadas. Eu, claro que afastei essas promessas como quem abre as cortinas do quarto à espera de que o dia não esteja chuvoso e fui, disparado, procurar o calhau, mas, depois de umas voltas para trás e para a frente, não vislumbrei sequer o meu ponto de referência, que era uma curva, uma curva que já era, pelos vistos. Fiz uma espécie de varrimento emocional, que é como quem diz um apelo à memória afectiva para vestir a pele de detective, e corri as áreas rochosas, saltando de pedra em pedra, sem, contudo, descortinar o paradeiro do sofá. Se, por um lado, se me afigurava impossível, criminoso até, alguém ter removido dali o ex-libris costeiro do Grande Porto, por outro eu era obrigado a reconhecer que mais ninguém, além de mim, lhe atribuía esse estatuto, donde a minha frustração tinha uma raiz essencialmente egoísta. Voltei lá depois disso, em ocasiões dispersas, só para confirmar o desaparecimento, e ainda hoje, devo confessar, há um cantinho de mim que não se dá por convencido. Mas é mera teimosia. Afinal, a mulher com quem vivo, o amor da minha vida, nunca se sentou naquele sofá. Foi a primeira e única, como se, fechando a porta dos enganos, Deus me tivesse aberto, enfim, a janela da verdade. Por isso, acho que está na hora de pôr uma pedra sobre o assunto.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O CRIADOR DE PÁSSAROS

Hoje entrou uma gaivota na minha loja. Era escura, como se tivesse saído de uma chaminé, e tinha o bico preto. Um senhor que vinha a passar, também ele escuro, talvez indiano ou turco, não sei, é que me explicou que as gaivotas nascem assim e só uns meses mais tarde, como a luz que emerge das trevas, se cobrem de branco e amarelecem o bico, naquilo que mais parece um disfarce, uma candura enganosa, pouco condizente com os seus dejectos fecais, largados lá do alto, quais mísseis, para corroer as superfícies edificadas do mundo. À minha mercê, e logo à minha, ou não fosse eu um Cristo da fisiologia voadora, estava um tenro exemplar de gaivota, num precário equilíbrio de patas, mas aparentemente sem medo, curioso até, revelando vontade de fazer uma vistoria à loja e observar com detalhe cada um dos objectos expostos. O meu primeiro impulso foi olhá-la, certificar-me de que nada de errado, para além do óbvio, que era uma gaivota entrar, com ares de cliente, numa loja, lhe teria acontecido, tipo uma queda, uma luta, um ferimento. Depois decidi dar-lhe o seu tempo, deixá-la estar, até que, presenciando o crescer do seu conforto, optei por ir ao café em frente comprar um pão e seduzi-la com migalhas para junto da porta. Sem gestos bruscos, debicou uma e deitou-a fora, esclarecendo-me sobre a sua falta de fome. Na rua, alguns transeuntes iam parando, pelo insólito de uma montra-ninho. A vizinha do lado, tirada dos seus vagares, prontificou-se a resolver o caso e, assertivamente, mas com a necessária delicadeza, pôs a gaivota fora da loja. Como pegar-lhe e devolvê-la à mãe passou, então, a ser o problema. Alguém ali se lembrou de um caixote. Veio uma caixa de cartão apanhada no lixo. Assumia protagonismo a mais desastrada falta de jeito quando uma mão vinda não se sabe de onde ergueu majestosamente a ave e, contemplando os presentes com um olhar sagaz, explicou: “Fui criador de pássaros”. Eu já tinha visto a cena do médico que aparece exactamente quando um indivíduo cai no chão, acometido por um problema cardíaco, ou algo assim, mas o súbito surgimento daquele criador de pássaros, como um relâmpago vindo de todas as incapacidades ali presentes, afigurou-se-me extraordinário. Talvez por se ter apercebido disso, ou então por outra qualquer razão, quem sabe até por uma razão derivada da que levou a gaivota a entrar na minha loja, o rapaz escolheu os meus olhos como alvo da intrepidez, quase loucura, que enchia os seus. “Para lhe pegares, é assim, por trás”. Disse isto e ia-me passar o bicho, que gritava e tentava à força toda espetar-lhe uma bicada, arrancar-lhe a ponta do nariz. Eu, para trás, dei mas foi um salto. O criador de pássaros não me disse mais nada. Desandou, rua fora, com a gaivota nas mãos. Eu segui-o e vi que, minutos depois, já estava ela no seu habitat, provavelmente pondo a mãe ao corrente da aventura. Voltei para a loja constrangido, como quem acabou de ser ensinado mas não aprendeu a lição, e questionei-me sobre o sentido que faria o recém-terminado episódio, se é que fazia algum ou estava destinado a fazer. Mais tarde, na varanda de casa, interpelando a noite, ouvi um ruído de gaivota. E, como se uma luz alva tingisse o cinzento das minhas penas, assolou-me a ideia de que os sentimentos escuros não são mais do que pequenas águias que encalham no nosso íntimo e dele não saem enquanto não os conhecermos o suficiente para sabermos como e por onde lhes pegar, aonde querem ir e como os ajudar. Aprendê-lo, desprendê-los, deixa a mãe deles descansada e poupa-nos à sua visita. Bem hajas, criador de pássaros.

INTEGRAR É PRECISO

Imagine-se numa discoteca em que, ao soar de uma música conhecida, toda a gente converge para a pista. Você, por não estar seguro dos seus dotes rítmicos, fica a ver. Dentro de si, a vontade de participar no movimento colectivo debate-se com a falta de autoconfiança. Põe a hipótese de o melhor ser sair dali, mas, depois de antever a violência de se reconhecer como um derrotado, como um incapaz, opta por dar a ideia de que se sente bem assim, parado, apenas a olhar. Apoia-se, entretanto, na bebida e no tabaco - e, cada vez menos dono de si, questiona-se também sobre se estas ‘muletas’ não prejudicarão a imagem que está a transmitir aos outros, se não o tornarão ainda mais fraco aos olhos do todo, de que não sente fazer parte. A páginas tantas, junto a uma pessoa sua amiga que se aproxima e pergunta por que não dança, você assume não conhecer o léxico dos passos, não sentir o ritmo, não acreditar nas suas capacidades, enfim, tudo somado, confessa-lhe que é a pessoa errada no lugar errado.
Agora imagine que o lugar errado é o lugar, ponto. Ou seja, não há outro. Você tem de aprender a dançar. Rendido à inevitabilidade, já depois de aceite o facto de que prolongar a recusa só lhe vai causar mais sofrimento, percebe que, para se integrar, necessita de superar os seus medos. Aí, a sua amiga ajuda-o a relativizar o peso dos outros, da massa dançante, dizendo que cada um está entregue a si mesmo, que se alguém olhar para si e gozar consigo, com o seu processo de aprendizagem, é porque esse alguém não usa da verdade, ele próprio não está seguro de si e assume a estratégia mais fácil e mais cobarde para se legitimar ali, que é procurar sacudir para outra pessoa a chacota de que teme ser alvo. Você, contudo, nesse momento, acha mais possível a mimese do que a expressão individual - está nos antípodas da liberdade e só quer passar despercebido. A música, por outro lado, não bate cá dentro, não faz eco no seu corpo, não o aquece, só o petrifica. A sua amiga passa por si, pisca-lhe o olho e diz-lhe para sentir, mesmo parado. Diz-lhe para ver como um direito o que se lhe afigura como um dever. Diz-lhe que numa piscina há os que nadam impecavelmente, os que disparatam, os que brincam, os que chapinam, os que dão mergulhos, e todos se divertem. É nisto que as metáforas são úteis. Você reflecte e faz um gesto tonto. Ri-se. Depois faz outro. Ou seja, assume o ridículo, é-lhe mais fácil, para início. Está na margem oposta à do pretendido, mas está porque quer, não porque almejou a outra e, dando um passo maior do que as pernas, caiu ao rio. Pelo menos, sente, já está lá, no quadro grande, no todo. Pouco a pouco, vai pondo um pé na água, outro, molha a perna até ao joelho, depois demove-se, com o frio e a corrente, espera um bocado, volta a fazer o mesmo, depois as coxas, ainda sentado na margem, e alguma coisa, que já não alguém, que já não a amiga mas alguma coisa sua, uma voz interna, lhe vai dizendo que o processo não é assim tão mau, até provoca sensações curiosas, agradáveis. Paralelamente, a ideia de chegar ao outro lado vai perdendo importância, embora com uma lentidão que retira nitidez a uma consciencialização sua das pequenas vitórias que grão a grão, como numa ampulheta que se vira ao contrário, está a acumular. Mesmo que demore muito a sentir a utilidade deste trabalho pessoal para o todo, já sente a utilidade pessoal de todo este trabalho, e isso é fundamental. Tem aí, de resto, um sinal claro de que o objectivo tende a abstractizar-se à medida que o processo se concretiza, ou seja, de que ele existe apenas para desaparecer, qual miragem no deserto, e isso, por paradoxal que pareça, não só não o demove como o motiva, fá-lo aumentar a capacidade de saborear as coisas, os momentos, cada vez com mais detalhe, dando-lhe a ideia de que a sua sensibilidade se subdivide, se reproduz, se multiplica. O eu que fiscalizava dilui-se pouco a pouco no eu que se mexe e, de um modo cada vez menos racionalizado, entram ambos no ritmo, dançando juntos. O primeiro passo fluído da dança é o primeiro passo fluído da integração, o eu e o eu já só um, olhando o tu olhos nos olhos, com apetite. A partir de então, como numa penetração sexual, tudo se humedece e abre, espantosamente. Parece que o mundo é seu, mas é e não é, ou melhor, é tão seu como do Outro. O orgulho da autosuperação leva-o a exibir-se, a exagerar na presunção de domínio, a abusar do poder. A sua amiga aproxima-se e, gentilmente, pontua-o, lembrando-lhe que uma guerra ganha tem muitas batalhas perdidas. A noite desliza consigo e, música a música, corpo a corpo, você vai percebendo que um novo dia está para nascer. Seja bem vindo ou bem regressado.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

MUNDO FANTASMA

Quando eu era pequeno, diziam-me para não acreditar em fantasmas, que eles não existiam. Hoje dizem-me o contrário: há-os por todo o lado. Os últimos de que ouvi falar, devido ao novo filme de Polanski, em estreia nas salas portuguesas, foram os escritores-fantasmas, gente que escreve por encomenda e vende a própria autoria, ou seja, permite que o cliente assine o trabalho, como se fosse seu. Eu acho que isto merece uma reflexãozinha, convocando a sociedade em todas as suas frentes. É que talvez estejamos a abusar da paciência de Platão e a esticar demasiado a corda que ele nos deixou para podermos aceder ao nosso estado puro. A metáfora de sermos sombras de nós próprios é isso mesmo, uma metáfora. Serve para desenvolvermos as virtudes que temos e perseguir a utopia de nos tornarmos iguais ao nosso melhor. Não serve, ou não devia servir, para comprarmos sombras que façam de nós sombras de sombras, para desenvolvermos os defeitos que temos e fincar pé na distopia de nos tornarmos parecidos com o nosso melhor. A verdade é que, assim, a mentira alastra. Os mistérios (como, aliás, os ministérios, ou não se falasse há muito de governos-sombras e coisas do género) tornam-se cada vez mais densos. As sociedades, em lugar de se desnudarem, ganham camadas. A floresta, que não a verde, escurece. E todos nós sentimos razões para voltar a ser crianças com medo do escuro. O que é, neste cenário, a informação? Vejamos, sem qualquer tomada de partido, ou seja, apenas a título de exemplo, o caso dos prisioneiros políticos de Cuba. Não poderão ser eles homens pagos para dizer o que dizem, mártires-fantasmas? Que certificados temos? E, se os houver, não poderão ser certificados-fantasmas? E assim sucessivamente, até um infinito lodoso, até esgotos nunca dantes navegados? Eu não me comprazo na profecia da conspiração, não contem comigo para gastar energias na espiral da desgraça, mas preocupa-me a falta de visão global com que estes actos-sombra, alegadamente inocentes na sua estrita dimensão profissional, são cometidos. Um escritor-fantasma deve ter noção de que, ao escrever a autobiografia de alguém que, podendo ser analfabeto, vai mentir ao seu público, se torna também um mentiroso-fantasma. Ou seja, não pode ficar só com a parte boa e dizer que o que fez foi por trabalho. O dinheiro que ganha na escrita-fantasma é pelo menos equivalente à credibilidade que perde na mentira-fantasma. Devia ser assim. Mas não é. Estamos numa fase do mundo em que, para o bem, todos nos dizemos contribuintes, mesmo que seja precisa alguma benevolência, ou a alusão ao efeito-borboleta, para atribuir uma quota-parte de responsabilidade nesse bem à actividade que exercemos. Para o mal, nenhum de nós ajudou, nenhum de nós sequer viu, de tão comprometido que estava com o com o seu labor inóquo, no seu departamentozinho estanque. Isto, esta forma de pensar, contemplando o benefício próprio apenas dentro da sua dimensão mais mesquinha, mais pequena, mais egocêntrica, e desprezando a evidência da globalidade do ser, do cordão umbilical que nos une a todos, está a levar a sociedade para um patamar de irresponsabilidade assustador. A própria ciência, no seu afã evolutivo, parece às vezes caminhar sozinha, obcecada consigo mesma, esquecendo a complexidade do mundo em que vive e o facto de as descobertas só se poderem considerar benéficas após a avaliação do seu aproveitamento. Aliás, os próprios cientistas, na sua qualidade de homens como os outros, estão à mercê de convites para se converterem em cientistas-fantasmas, em cientistas-sombras. Temos ouvido falar, com insistência, do neuronegócio, e isso, evocando Huxley, prefigura um arrepiante mundo novo. Não se infira daqui que eu me oponho ao desenvolvimento científico. Bem pelo contrário, toda a observação me parece imprescindível, essencial. Mas, tanto em termos de princípio como de método e objectivo, ela não deve descartar, como pano de fundo, a conexão entre sujeito, objecto, domínio específico e contexto global. Se os cientistas idóneos, responsáveis e dignos, que serão muitos, estou convicto, não o fizerem, cedendo a uma pressão crescente de interesses também eles cada vez mais sombras, tornar-se-ão responsáveis, tanto como quem os suborna (e ainda que queiram, em prol da ciência, varrer para debaixo do tapete a consciencialização desse suborno), pelas consequências nefastas que o planeta venha a sofrer. O problema que se põe aqui, no fundo, é o da consagração de uma coisa foneticamente próxima da meritocracia: uma mentirocracia. Um mundo-fantasma, com homens-fantasmas (assinale-se, a propósito, o visionarismo de Sérgio Godinho), leis-fantasmas, governos-fantasmas, empresas-fantasmas, dinheiro-fantasma, instituições-fantasmas e valores-fantasmas, onde a luta já não é por um lugar ao sol, mas por um lugar à sombra.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

TARDINHA

A tarde calma tem um encanto infinito. Transforma-se em noite, como todas as tardes, mas dentro de mim mantém-se tarde e arde num brando lume sem fim. Olhem para a de hoje, a pousar o seu manto etéreo com arejados requebros de medusa. Ela insinua-se e a sua chama chama-me como se a cada segundo se fosse apagar, mas eu, que já a conheço, porque a trago na alma desde a primeira tarde, sei que isto é uma dança como a que mantenho com o tempo desde que o tempo perde tempo comigo.

DIAS ASSIM

O médico ausculta-me e percebe que a resposta, no meu coração, se antecipa à pergunta. É coisa de momento, passa. Tenho disto quando me sinto em falta, vazio, embora às vezes me sinta vazio e não em falta. O vazio, como a verdade, depende de mim, o que pode ser um descanso ou uma fadiga, um sonho ou um pesadelo. Se o meu vazio deixa que o vazio de tudo pouse sobre ele, então a pergunta pode ser-me feita como veio ao mundo, nua. Se o meu vazio desespera por uma veste, então a resposta vomita-se - vomita-o. Nestes dias, nestas horas, não me enviem coisas belas. São um desperdício.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

FIM DA LINHA

Será que os pássaros vivem a crise? Será que há menos gente a dar-lhes migalhas nos jardins? E todos os outros animais? Será que partilham as angústias do Homem sobre o estado do mundo? Será que sofrem de forma indirecta? Pelo que me é dado ver, não. A generalidade dos animais ditos não racionais habituou-se a viver em liberdade, coisa de que o Homem, no exercício da razão, quis prescindir. Cioso da sua mais-valia, despediu-se da cadeia de ADN global para se fazer a uma vida destacada, para escrever uma história acima do universo, mero contexto, paisagem, folha lisa. Capítulo após capítulo, encontra-se hoje perante a realidade irrefutável de ter criado um Deus à sua imagem, chamado dinheiro, Deus esse que, cada vez menos, por ser filho de um Homem desligado, de um recorte físico do infinito, está em todo o lado. Ora, se a ideia de que a salvação e a felicidade se baseiam na posse é hoje do domínio da lógica, do código subjacente à vida da espécie, há então que lutar com unhas e dentes por esse Deus. A este raciocínio interpõe-se, no entanto, um problema: o que fazer com as pessoas que se sentem felizes sem possuir ou querer possuir a dita felicidade? Pois excomungá-las, atirá-las para outra espécie, uma espécie inventada, uma espécie nova, que, tendo em conta a teoria evolucionista, quem sabe justificaria a reciclagem do termo super-homem. Hum…, não, não faria sentido evocar anacronicamente uma estrutura mítica cuja falência teve, aliás, expressão retumbante na realidade. Fosse ele um pássaro, como admitia a célebre pergunta dos homens que o viam pela primeira vez a rasgar os céus, e ainda andaria aí, imune à crise, mesmo que não a salvar pessoas, mesmo que não a aliar-se ou a substituir-se ao Deus dinheiro. Mas, enfim, talvez lhe assentasse bem a designação de supra-homem, um “supra” ligado à superação, à sublimação, à transcendência - uma transcendência inclusiva, porém, não uma transcendência irresponsavelmente mística, magicamente religiosa. Cumprida essa limpeza, deixada a nova espécie ao sabor dos pássaros, aprendendo a voar, a ser livre, o Homem poderia retomar a escrita da sua obra-prima, do seu grandiloquente livro técnico, sem romance, com menos personagens e mais Deus disponível para cada uma delas, e tirando proveito de, através do erro, ter aprendido uma lição extraordinária, imprescindível ao desejado final feliz: reprodução, jamais.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A SOLO

Eu, com o sol, dou à sola. É melhor, porque a mulher, com o sol, sola, e eu não me consolo com o seu solo, pois se ele me assola a trave mestra eu ainda me isolo e desolo a orquestra.

terça-feira, 6 de julho de 2010

DE MÃO EM NÃO

Um homem sentado no passeio estende-me a mão, e eu, lendo um cartão que ele, como se fosse a outra mão, pousara sobre os joelhos, dei-lhe dinheiro. O cartão dizia: vivo na rua e não tenho o que comer. Dentro de mim, parecia que aquelas duas mãos haviam entrado para um debate político em linguagem de surdos: uma acenava-me com o sofrimento do homem, a sua necessidade; a outra procurava convencer-me de que, ao dar-lhe dinheiro, não o estava a ajudar a levantar-se. Pelo que já revelei, deduz-se que o primeiro argumento me emocionou mais, mas não é verdade: o debate das duas mãos era anterior àquele momento e continuou para lá dele. Agora mesmo ele mantém-se vivo, e não sei até se morrerá antes de mim. Mas, na dúvida, dei-lhe dinheiro. Há quem, na dúvida, não dê. Eu gosto de confiar nas pessoas até prova em contrário. Confiar não só no que me contam, mas confiar também na sua bondade. Para tal, porém, ajuda-me vê-las, tê-las à frente. Percebo isso hoje muito mais nitidamente, com a globalização das relações. Esta manhã, por exemplo, ligaram-me do Japão. Era um homem bem educado, embora a pender um bocadinho para o autómato, à imagem do que acontece um pouco com os operadores das redes telefónicas aqui em Portugal e julgo que por todo o mundo, e paulatinamente foi-me encaminhando para o que queria: saber se eu estava interessado em investir na limpeza da costa norte-americana, vítima de um dos maiores desastres ambientais de que há memória. A vantagem que eu tinha, segundo ele, era que, entrando com 60 dólares, sairia garantidamente com pelo menos 90, e o meu nome ficaria associado a um acto de nobreza planetária. O processo era esquisito, a qualidade da chamada e o problema da língua também não ajudaram, claro, mas, no essencial do que eu pude entender, havia uma empresa, altamente reconhecida pela Casa Branca, destinada a angariar fundos para combater a maré negra. Escusado será dizer que só este programa, enunciado assim, me fez lembrar o presidente Obama e o seu drama pessoal, que hoje não é um drama e sim um motivo de orgulho mas que ao longo da vida foi, se não um drama, pelo menos uma fonte de reflexões tensas, umas gratificantes e outras corrosivas, ou não houvesse ainda muitos americanos a dar-se chapadas para tentarem perceber como é que a maré negra chegou à Casa Branca, como é que um sujeito chamado Barack Obama rompeu com uma História, relativamente curta, tudo bem, mas imaculada na sua alvura. Para que a tal empresa tivesse êxito em tão humanitário projecto, era necessário que eu disponibilizasse a minha quota-parte de responsabilidade cívica - em dinheiro, obviamente. Neste caso, e avançando pela linha telefónica, não eram duas as mãos que eu visualizava, mas três: uma estendida, pedindo; a outra, de polegar erguido, aludindo à boa causa; e a última, de palma em riste, garantindo-me que a recompensa financeira chegaria. Eu, na minha ingenuidade, e sem ter captado com suficiente rigor os trâmites do negócio, supus que os lucros da investida ao petróleo submerso, que o mesmo é dizer os lucros do prejuízo, me tocariam também na devida percentagem. Estive quase uma hora a falar com o Mr. Banks (um nome bem a propósito, diga-se de passagem), tendo os últimos 15 minutos sido empregues na minha tentativa de o fazer compreender, sem me levar a mal, que eu não estava interessado, não em ajudar a limpar a costa americana, não em contribuir para fazer do planeta um lugar melhor, mais justo, mais respirável, mas em lucrar, e ainda por cima de forma ínvia, complexa, sinuosa, com a catástrofe ambiental, abrindo inclusivamente assim um precedente para que, no futuro, depois da BP, viesse a CP, a DP, a EP, a FP e outras multinacionais identificadas pelo P do petróleo, da porcaria, da perversidade e, numa dimensão mais religiosa (agora tão cara, como pretexto, aos fazedores de guerras), do pecado, provocarem novos desastres, novas tragédias, destinadas a levar ainda mais para a frente um sistema económico que, justamente pelo seu impacto social, já mostrou à saciedade que tem, ele sim, e mais do que a maré negra, de ser travado. Se o fosse, talvez o mundo entrasse na mão.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

DAS BOAS INTENÇÕES

A escrita, como qualquer actividade criativa, deixa um lastro vivo que se vai desenvolvendo dentro e/ou fora do criador. Eu, por regra, escrevo e sigo em frente, mas excepcionalmente posso encontrar no processo de escrita uma centelha solta, deslocada do contexto, e então comprometo-me com ela a resgatá-la ao corpo estranho em que se encontra e a dar-lhe nova casa. Aconteceu-me isso a meio de um dos últimos textos que escrevi, a respeito da violência do pensar, quando ressalvava, antes de abordar uma reflexão publicada por um amigo, que “a aventura interpretativa pousa sobre alguns dos ramos mais finos da árvore intencional”. Dei-me então conta, e desculpem desde já, primeiro, o autoconvencimento (quem sabe, cabotino) e, depois, o aparente narcisismo, de que tinha criado uma metáfora de raro brilho, pelo menos no meu universo metafórico. De facto, a intenção é uma árvore, há toda uma raiz na sua base e um tronco denso que se expõe numa ramagem diferenciada e mais sensível à medida que se estende, que o seu alcance é mais subtil, mais delicado, mais profundo. Já a interpretação é um pássaro que provoca efeitos distintos consoante a resistência da parte do ramo em que pousa e a intensidade com que o faz. Se esta for maior do que aquela, o pássaro quebra o ramo, magoa a árvore, mutila-a, e ele próprio não sai ileso, já que se assusta e tende a cair, embora possa recuperar o equilíbrio no voo. Mais do que a eventual beleza da metáfora, interessou-me, porém, a sua utilidade, num tempo em que nos atiramos uns aos outros munidos das mais incendiadas certezas, como quem come sopa em prato raso, e com a nossa fome de imediato, de explicação, nos elefantizamos, nas patas e na memória, devastando o que falta da porcelana do mundo. Podem interpretar este texto como arrogante, mas não era essa a minha intenção.

OS PÉS PELAS MÃOS

A minha filha está na cozinha, em bicos de pés, a tentar chegar com as mãozitas a um pacote de bolachas que eu afastei o suficiente, julgo, da borda do balcão. Afinal, julgo mal: ela fez cair o pacote. Ponho-me a imaginar o que pensará ela sobre a conquista - se achará que foram as mãos as responsáveis, se atribuirá o mérito à inclinação dos pés, se premiará o conjunto ou se nem perderá tempo a reflectir sobre isso, que é o mais provável. O meu pai está na cozinha, sentado, a dizer-me que a ciência, mesmo sendo um cemitério de hipóteses, é o único caminho para a verdade, ao passo que a filosofia é, na generalidade, um amontoado de disparates. Segundo ele, a filosofia é apenas um degrau, um degrau que está abaixo da ciência. Eu pergunto-me, e pergunto-lhe por outras palavras, sem que ele mostre vontade de me ouvir, se esse degrau não estará para a ciência como os pés da minha filha estarão para as suas mãos na abordagem ao pacote de bolachas.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

PENSAR

Li há dias, citada por um amigo, uma frase enigmática de Agustina Bessa-Luís: “Pensar é o acto mais violento que há”. O meu amigo interpretava-a numa dimensão conjuntural, relacionando a violência e, ao mesmo tempo, a necessidade do pensar com “os sinais de degradação de um sistema económico-social provavelmente em vias de deixar de fazer sentido tal como o conhecemos”; ou seja, o meu amigo insinuava que esquecer, que trancar a porta do pensamento, seria menos violento no presente, mas teria consequências terríveis no futuro. Esta reflexão valorizava, sobretudo, na frase de Agustina, a violência apontada ao próprio sujeito pensante, como se afirmasse: “É violento para mim pensar no que se passa”. E depois, já de sua livre vontade, exortava esse mesmo sujeito pensante a pensar, a ser violento consigo próprio face a uma demanda superior, a do mundo - de que ele, claro, faz parte. Admitia, assim, ainda que estejamos a falar num plano simbólico e em que a aventura interpretativa pousa sobre alguns dos ramos mais finos da árvore intencional, a violência como meio legítimo para perseguir determinado fim. Eu sinto a frase de Agustina de outra maneira: pensar é violento porque quebra justamente o ramo da árvore, da árvore da existência, da árvore universal. Pensar, ou aquilo a que comummente se chama pensar, que é, no fundo, a face voluntária do pensar, o pensar desejado, o pensar procurado, o pensar intencional, equivale a separar, a desligar, a desunir. A pessoa que pára para pensar, como a própria expressão indica, pára. Ela provoca o pensamento, ela desconfia do pensamento que lhe chega, ela encomenda outro pensar. E isso, pensando (as palavras são fantásticas) no universo não como um corpo vivo mas como um vivo sem corpo, é violento. Não digo, com isto, que seja mau ou bom. Dar à luz, por exemplo, é violento. Pensar, no sentido aqui analisado, será como dar à luz e, simultaneamente, tirar à luz, extrair do infinito, matar, somar ao nada, subtrair ao todo. E, afinal de contas, deixar tudo na mesma. Mas há, claro, infinitos planos de interpretação do pensar, o acto de pensar pode ser focado e perspectivado de formas inquantificáveis, correspondendo a cada uma delas mil e um outros efeitos relativos e juízos de valor. Nem todo o pensar é corpo vivo, embora muita gente pense que o pensar que é vivo sem corpo é não pensar. Quem pensa isso nega os opostos, nega o paradoxo da existência, nega-se - dispensa-se. E eu não imagino coisa mais violenta.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

CERTIDÃO DE ÓBIDOS

Tenho uma amiga que não sabe de onde veio, ou de quem veio, mais precisamente. Veio ter comigo assim, de repente, do nada, como terá vindo ter com ela mesma. Depois de algumas conversas, e percebendo que, embora perdidos na encruzilhada de sentidos que a vida nos aponta, ambos vivíamos em nós mesmos, e por isso nos entendíamos, confidenciou-me que o segredo da sua génese lhe fora sonegado desde que mostrou curiosidade sobre ele. Fê-lo, claro, porque faltavam cartas na mesa. Desorientada, naturalmente, disparou em todos os sentidos, como uma mãe que procura um filho desaparecido, tocando nos ombros de cada oportunidade, à espera de que ela se vire e a cara lhe sorria. Desenvolveu a fé. Falhou, falhou, falhou. Foi aprendendo, por razões de sobrevivência tão intimamente ligadas a quem tem algo de fundamental para encontrar, mesmo não sabendo o que seja ou não tendo pistas sobre onde esteja, a retirar de cada falhanço a ilação certa, o aspecto bom. Reverteu em amor o que para quase todos seria medo e ódio, uma vida amarga, um mar de espinhos. Como a roda de um carro, ou talvez de uma bicicleta, dada a sua propensão, de raiz dedutível, para as coisas mais transparentes, menos engenhosas, foi acima e abaixo, ao oito e ao oitenta, e entre ambos chegou a deixar de rodar, por uns tempos. Ou seja, tentou tudo. O aconselhável e o impensável, o sensato e o louco, a diluição no colectivo e o radicalismo individual. E os tons do meio, tantos quantos pôde, até hoje, coleccionar. Quando, numa dessas vagas, deu comigo, era como se quase não lhe faltassem peças do puzzle mas não soubesse onde as pousar, como se não tivesse chão. Propus-lhe um uso incerto do meu, algures entre a realidade e a fantasia, um meio conto. Parecia decidida a ficar, a permanecer, mas acabou por deixar o meio conto a meio, não sem antes se fazer valer da experiência acumulada na sua busca pessoal para me desbloquear uma veia criativa, uma via construtiva, e acender mais uma luz no sentido da minha vida, ironia de um destino que ela, então, não reconhecia como tal, ou não reconhecia de todo. Foi para casa, para Óbidos, a terra onde nasceu. Ter-se-ão passado dois meses. Hoje recebi uma carta dela. Lá dentro, li que não lhe importava já outro sentido na vida do que estar bem e em paz, e sorrir, com dignidade, esteja onde estiver, faça o que fizer, seja qual for o desafio que lhe aparecer pela frente. A questão terá deixado de ser descobrir o sentido da existência para passar a ser existir em todos os sentidos. Nos dela e nos dos outros, como existe, de facto, no meu. Pensando nisto, aliás, perguntei-me se o verdadeiro sentido da vida dela, por paradoxal e até algo triste que enganadoramente se afigure, não seria ajudar os outros a encontrar o sentido da vida deles. Varrendo com uma mão os pensamentos e já quase a guardar, com a outra, o envelope, estremeci de surpresa quando, ao passar os olhos pelo remetente, li: Rua do Cemitério. Então, não me perguntem porquê, tive a certeza de que a minha amiga estava bem, como que renascida. Aquela carta era uma certidão de nascimento. E, pelo que não deixa de ser outra ironia do destino, uma certidão de Óbidos.

terça-feira, 29 de junho de 2010

PASSAR À HISTÓRIA

Há coisas em nós que são extremamente difíceis de trabalhar. Tomamos consciência delas e achamos que, cumprida essa etapa, vai ser fácil repô-las no lugar. É, eventualmente, um efeito perverso dos comprimidos, cada vez mais comuns ao nosso quotidiano, sejam para uso pontual ou crónico: se temos qualquer variação nos níveis considerados normais disto ou daquilo, metemos uma ou várias pastilhas e, em mais ou menos tempo, a regularidade está de volta. Até pode ser que um dia haja comprimidos para a inveja, por exemplo, mas não creio que a raiz de onde ela vem possa ser moldada sinteticamente, que possa ser convertida por um corpo externo. O efeito desses comprimidos será, em princípio, paliativo, no sentido em que, deixado o seu uso, a inveja regressa, a menos que, como acontece nomeadamente com os fármacos antidepressivos, a pessoa aproveite as consequências anímicas da toma para trabalhar, ela mesma, a verdadeira causa da depressão. Detectar inveja em nós próprios é mau, dói por dentro, rói, mas também é bom, na medida em que nos consciencializamos de algo que, a partir daí, podemos tratar. Como tratar, eis a questão. Não é fácil, não é nada fácil, não há fórmulas mágicas e muitas vezes o insucesso acumula raiva à inveja, as duas juntas contra nós, por não as conseguirmos pôr a nosso favor, por não conseguirmos encontrar nelas a outra face, que alegadamente nos querem dar, nos espetam à frente dos olhos, cegos, eles, desesperadas, elas. Não é de hoje que vejo em mim inveja, raiva, ódio, ciúme. Com o tempo, fui-me apercebendo de que esses sentimentos pertencem ao meu mundo pequeno, que se desvanecem à medida que esse mundo se alarga. Não tenho, por exemplo, inveja do universo, embora poeticamente pudesse invocá-la. Não tenho inveja das formigas fortes, das amêijoas-rainhas, das paisagens bonitas, dos homens que ficaram para a História. Mas tenho inveja dos homens que vivem a História, tanta mais inveja quanto mais essa História seja minha, essa História seja história. Tenho inveja de familiares meus, tenho inveja de amigos meus, tenho inveja de colegas meus, tenho inveja de gente do meu país, de gente que se destaca no meu país, de gente que escreve no meu país, de gente da minha idade ou mais nova, de gente que me ultrapassa em conhecimento específico, em saber técnico e proveito público. Porém, tenho pouca ou nenhuma inveja de estrangeiros, e isso é estupidamente incrível. Faz-me perceber o quão territorial é o animal que vive em mim, ou em que eu vivo, ou as duas coisas. Recuso apontar o dedo ao capitalismo, ao espírito concorrencial e competitivo de que fomos desde cedo imbuídos, ou talvez não recuse, mas aponto e pronto, não espero resolver com isso o meu problema, fazê-lo seria como tomar um dos tais comprimidos que nos anulam momentaneamente as dores, que nos silenciam a prazo o organismo, que arrolham o sangue espumante das nossas veias. A culpa, ou a responsabilidade, se quiserem, de eu ser assim é minha, tão minha como a responsabilidade de deixar de ser. Ainda hoje lia, num jornal diário, uma crónica de um escritor que, pela fotografia, deve ter trinta e poucos anos. Como um cão que avista outro, fiquei logo hirto, de orelhas erguidas e pêlo eriçado. Toda a leitura foi tolhida por isso, por essa febre de lhe encontrar um defeito, de o criticar, de lhe assinar a certidão de óbito, tudo coisas que, desde o princípio, mas com mais pujança no fim, se viraram contra mim. Eu ladrei ali para mim próprio. Não sei o que é mais revoltante, se sentir isto, se sentir aquilo. Por outro lado, se eu não tivesse sentido aquilo não teria sentido isto, e se não tivesse sentido isto não sentiria o que agora sinto, ou seja, que aquele escritor contra o qual eu me dispunha era, de algum modo, eu mesmo, ou seja ainda, que em muitos casos os textos que eu escrevo vão ter eus desses a lê-los, a desaproveitá-los, a destruí-los. Pode parecer uma perspectiva estratégica, egoísta, calculista, e não sei como negá-lo, se calhar nem há maneira, se calhar nem vale a pena, se calhar é o que é, mas se o for será um egoísmo sábio, será para o egoísmo, porventura, o tal lado bom que me falta encontrar para a inveja, a tal outra face da raiva, do ódio, do ciúme e de todas as coisas que nos habitam, latentes ou patentes, desde que habitamos o mundo. E, se assim for, levar-me-á para mais perto do meu eu grande, do meu eu estrangeiro, do meu eu universal, do meu eu que não invejo, do meu eu que não inveja. Do meu outro mundo.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

FUTEBOL

Desde muito cedo que sou fascinado por futebol. Sempre tive, aliás, em virtude do tempo que o futebol ocupa na minha vida, queixas das pessoas com quem me relacionei mais intimamente. Acho que já estou um bocado melhor, isto é, hoje posso prescindir de ver um jogo importante, como aconteceu há dias com o Portugal-Coreia do Norte, e não cai o Carmo e a Trindade. Em todo o caso, se puder, não falho. Se não tiver nada para fazer e estiver a dar um jogo na televisão, não invento alternativas. Isso, por um lado, e ao contrário do que possa parecer, já quer dizer que não encaro a minha paixão pela bola como uma dependência, ou pelo menos uma dependência corrosiva, alienante e inútil, estúpida. Se o fizesse, contrariá-la-ia. Foi o que me aconteceu com o tabaco, com o álcool e com outras coisas: quando me apercebi de que ia ser difícil dizer-lhes não, disse. Por outro lado, ainda não consegui explicar para mim próprio, e isso intriga-me, o facto de nunca me ter decidido a fazer vida do futebol, ou seja, a estudá-lo tecnicamente, a aprofundar os meus conhecimentos científicos sobre ele, a trabalhar nele. Há qualquer coisa de platónico entre mim e o jogo, só pode ser. Se não, vejamos: durante cinco ou seis anos fui jornalista desportivo, e garanto que nunca me tocou tão pouco o futebol como então. Dir-se-ia que estava no meu mundo: contactava com os jogadores, fazia-lhes entrevistas, via-os treinar, cobria os jogos, acompanhava os clubes em provas europeias, procurava notícias sobre transferências, sondava os empresários, conhecia os dirigentes - andava mesmo perto de tudo o que me encantava. E, não sei se apesar disso ou se por isso, não lhe sentia o sabor. Decidi sair depois de uma experiência esclarecedora: nas habituais entrevistas antes dos jogos, calhou-me o então treinador do Beira-Mar. Fui para Aveiro já com o trabalho todo feito, perguntas e respostas. Quando voltei, quase não precisei de fazer alterações. No dia seguinte, falei com o director do jornal e disse-lhe que me queria ir embora. Durante uns tempos não quis saber de futebol, era como se me tivesse enjoado, e até pus a hipótese de nunca mais voltar a ligar pevide ao fenómeno, do mesmo modo que deixara de sequer poder olhar para um prato de fígados de pescada depois de uma barrigada deles me ter provocado um enjoo monumental. Afinal, estava enganado. Hoje continuo sem sequer poder olhar para um prato de fígados de pescada, mas recuperei inteiramente a paixão pelo futebol. Talvez resida aí a razão de me manter distante, de o acompanhar ao longe, talvez não me queira desiludir outra vez, embora, de um ponto de vista prático, isso até me fizesse bem. Em todo o caso não deixa de ser estranho, porque, se eu estabelecer uma analogia entre a bola e as namoradas, vejo que neste campo, apesar de todas as desilusões que já tive, voltei sempre a jogo. Enfim, resigno-me à possibilidade de serem as tais razões do coração que a razão desconhece. E, definitivamente, é numa perspectiva passional que o futebol me encanta, numa perspectiva estética, sobretudo, mas também sentimental, de uma intensidade emotiva, de um sentido de compromisso que, claro, se traduz em competitividade, e ainda numa perspectiva organizacional, mas não científica, não dissecada e reproduzida, mais a que espontaneamente se revela, de acordo, por exemplo, com as características diferentes de jogadores de diferentes nacionalidades, que as há, não me digam que não, pois, por mais que um treinador treine os seus jogadores sob determinados princípios, o futebol em campo será diferente se esses jogadores forem argentinos ou alemães, e isso enlouquece-me, adoro vê-lo reflectido na relva, a importância da geografia, da cultura, do contexto, as várias bolas dentro da bola, como se esta fosse, afinal, uma bola de cristal, e cada um de nós, cada um dos apaixonados por isto, uma espécie de bruxa, de medium, medium defensivo e ofensivo, centro e ala, esquerdo e direito, uma bússola movida a fascínio, a deslumbramento, apontada para fora, para fora de si e do seu dono, focada no jogo da vida e na vida do jogo, suspensa da batida, do ritmo de cada lance, à espera do inesperado, como num thriller de estalo. Isto, sim, para mim, é futebol. Daí que não me sinta seduzido pelas análises que hoje proliferam nas transmissões televisivas e em tudo o que é cobertura jornalística dos desafios, obcecadas com os movimentos de ruptura, os passes entre linhas, a dobra do trinco ao lateral, o 4-4-2 clássico ou em losango com estas ou aquelas nuances, a segunda bola (eu vejo sempre uma), as transições e os processos ofensivos e defensivos, a circulação em posse, por aí fora. Eu percebo que sejam coisas importantes para os treinadores, no apurar dos detalhes, no afinar dos pormenores, no tal “trabalho específico” que fez história e hoje já não se ouve, mas, sei lá, não estou a ver um crítico de cinema a analisar ponto a ponto a montagem de um filme, as muletas técnicas a que um actor recorre numa cena em particular e que, apesar de durar apenas trinta segundos, são fundamentais para aguentar a tensão da narrativa, a enunciar a lista completa de efeitos especiais ou a falar do tipo de película utilizada e da extrema influência da sua escolha na textura da imagem - e, se o fizer, não me parece que vá ter muitos leitores. Eu, quando vejo um filme, vejo um todo, passam pelos meus olhos tantos pormenores quantos os que a visão global abrange, sendo que uns me atraem mais, outros menos. Acontece-me o mesmo com a música: é perdendo-me no tecido sonoro que lhe encontro as particularidades, é deixando-me levar que me surpreendo com as miudezas e constato a importância capital de algumas delas. E assim funciona também, para mim, o futebol. Em qualquer uma destas artes, que eu não distingo enquanto tal, entendo o espaço como uma realidade basilar, imprescindível. Em qualquer uma delas, quem souber habitar o espaço tem mais possibilidades de sucesso. E, para se saber habitar o espaço, primeiro é necessário percebê-lo, ouvi-lo, senti-lo. O comentador de futebol, de igual modo, tem de perceber o seu espaço de intervenção, e às vezes não é o mais desenvolvido cientificamente o que melhor se sai nos comentários, o que dá mais prazer ouvir, como tantas vezes não é o jogador mais tecnicista, mais propenso à finta, mais agarrado à bola, o que encanta mais ver jogar e, menos ainda, o que melhor produz. Ao falar nisto lembro-me, por exemplo, de Vítor Manuel, um treinador que já passou pela televisão e foi então, na pele de comentador, vítima, ele próprio, de comentários agressivos e críticas arrasadoras, alegadamente porque qualquer um dizia o que ele ia para ali dizer. Ora, aí está a essência do futebol: é um lugar comum. Por isso é que todos gostamos dele. Todos nos revemos nele. Vítor Manuel era um comentador simpático que, além disso, percebia imenso de futebol e não puxava dos galões para o demonstrar, pensava antes nas pessoas que o ouviam, contextualizava as análises nos climas de tensão respectivos, nunca era leviano ou demasiado assertivo nos reparos a técnicos e jogadores, dando um verdadeiro exemplo de respeito pela profissão, pelos colegas de profissão e pelos espectadores. O mesmo vejo agora em Carlos Manuel. Não será por acaso que pertencem a um outro tempo e tipo de futebol, menos obsessivo, mais livre, menos fracturado e, numa determinada perspectiva, que não a das transferências ou a das transmissões, mais global. Tudo tem o seu lugar: a panorâmica e o grande plano. Mas não se perca de vista quem vê: quem vê, ou seja, o receptor último do futebol, aquele que nada tem de transmitir a outrém no momento em que usufrui de um jogo, quer incorporar o som da televisão como um elemento fundamental do seu jogo, não só pelo ambiente das bancadas como pelas achegas do comentador, mas quer incorporá-lo no seu próprio espaço, que não deve deixar de ser seu. Um árbitro sai-se bem quando não se dá por ele. Um comentador também. Mourinho, um amante do integralismo, há-de concordar comigo se eu disser que um bom comentador é aquele que, em vez de cortar o jogo às postas e dissecar bocado a bocado, se consciencializa do seu fluir, se deixa tomar pelo seu curso, se experimenta nele. Ou seja, também joga. Dentro e fora das quatro linhas.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

S. JOÃO

João estava são, mas não tencionava ir ao S. João. Era uma contradição quase evidente, pois, no Porto, só não vai ao S. João quem estiver em má fase, morto ou doente. Mas João tinha uma explicação assaz convincente: o seu cão, pouco paciente, não lhe daria paz em noite tão exigente. Uma solução era deixar o cão na vizinha, mas esta, tripeira dos quatro costados, queria também ir à festa, e sozinha, sem atrelados. O que fazer, então? Das tripas coração? Talvez não. Afinal, o S. João não valia tanto, para o João, como aquele espanto de animal. No entanto, mais do que ninguém, estava o dono seguro de que quem troca o pão, mole ou duro, e a sardinha na brasa por passar, com o cão, em casa, um serão distinto, sem um grãozinho na asa, não sabe o que perde, pois como isso não há nada, nem o chouriço, o vinho, verde ou tinto, a martelo, nem a própria martelada. Bailarico popular é o S. João, e só ficam a ganhar os que lá vão. Foi já resignado à desdita que o João, acabrunhado, teve súbita visita de uma cantora de fado. Ainda ela lhe dizia que viera de Lisboa rever uma velha amiga mas não a tinha encontrado, logo o João, animado, deu corda à imaginação, pensando se não seria a sumida rapariga a sua vizinha do lado. Era mesmo, pois então, e foi em tom de cantiga que o bom do João propôs à querida fadista condição oportunista para lhe dar guarida até ao regresso da amiga: tomar-lhe conta do cão. Ela ficou convencida e, pronto, missão cumprida, lá foi ele, feliz da vida, cumprir também a tradição.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

AMOR EM CÓDIGO

Imaginem um auditório cheio de gente. No palco, apenas um banco e uma mesa com um caderno ao alto, qual partitura. Pelos bastidores, entra em cena um homem que traz um computador portátil. Senta-se no banco e pousa o aparelho, já aberto, na mesa, entre si e a partitura. Distende os dedos de ambas as mãos, depois abana-os, folheia o caderno à procura da página que pretende e estica bem a coluna, recolhendo-se por breves segundos num silêncio aparentemente meditativo. Começa então a teclar, primeiro com ligeireza mas sem agitação, ou seja, de forma fluida e, ainda assim, tranquila, como quem desliza pela neve em ritmo de passeio; depois pára abruptamente, dando a sensação de ter visto uma coisa estranha, talvez assustadora, ou então digna de espanto, no imediato não é bem claro, mas rapidamente se percebe, pela cadência seguinte, sem dúvida traduzindo um diálogo feliz, radioso, a benignidade da surpresa. As emoções do público vão oscilando de acordo com os batimentos, tão expressivos que são quase cardíacos, como se a peça tivesse um coração e as mãos daquele homem saíssem dele para jorrar sangue pelo teclado, sangue quente e frio, sangue azul e vermelho, vida inteira. A certeza de que, seja qual for o guião, seja o que for a matéria prima, a obra que está a ser ali criada, ou recriada, não menos prima é, não menos magistral, ardente, impressionante, toma os espectadores como uma onda invasiva, de proporções gigantescas, uma presença irrefutável e avassaladora, mas nem por isso arrepiante, antes pelo contrário, produz neles um efeito tranquilizador, dota-os de uma serenidade perfeita, como se tudo o que em palco está a acontecer, embora transborde de realidade, de realidade sanguínea, de veracidade, de palpabilidade, lhes fosse absolutamente exterior. A actuação demora uma hora e meia, durante a qual há três intervalos. Em cada um deles, o homem repete o ritual das mãos, da procura das páginas e dos segundos de silêncio. No fim, com o rosto e a camisa encharcados, fecha o computador, levanta-se e, literalmente exausto, encara a audiência. Os olhos não o deixam mentir: ele não quer palmas, não quer “bravos”, não quer nada das pessoas que ali estão. Quer apenas ir embora. Mas fica, não priva o público do seu ritual mais caro. A explosão acontece, como reacção espontânea à injecção de amor, de inacreditável entrega, que o corpo do público, já todo um, acusa. O intérprete sai de cena e a sala vai-se esvaziando pouco a pouco, na proporção directa do calor e do cheiro. Finalmente, não sobra nada. É então que aparece um homem, outro homem, e diz, para ninguém: foram aqui reescritos excertos de livros de Tagore, Pessoa e Bolaño.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

SARAMAGO

Muitas vezes me questiono sobre o poder mágico da morte, a capacidade que ela tem de mudar a opinião dos homens uns sobre os outros, ou pelo menos de condicionar a expressão dessa opinião. Sempre que um insulto se transforma num elogio, tendo a considerar que, aos olhos do emissor de tão opostos juízos, a pessoa sobre a qual eles recaem fez alguma coisa de positivo, produziu um bem passível de a redimir do mal anterior, ou de o atenuar, vá lá. Penso, então, se a morte de alguém que repudiamos será, para nós, esse feito elevado à sua potência suprema, se a borracha que apaga a existência física de uma pessoa tem o condão de apagar também todas as memórias negativas que dela fomos acumulando, como um processo que prescreveu e em relação ao qual não há já nada que nos prenda. Talvez o raciocínio seja: este não chateia mais, portanto vamos poupar quem gosta dele a mais chatices. Eu, no entanto, não descarto a possibilidade de, em muitos casos, aqueles que gostam das pessoas que morrem preferirem ouvir, na morte dessas pessoas, serem-lhes atribuídas pelos outros as virtudes e os defeitos que os mesmos lhes atribuíram em vida, isto pensando, em primeiro lugar, no morto, que, enquanto vivo, teve uma conduta que, se não agradou a gregos e a troianos, foi porque não tinha de agradar, ou até porque não queria agradar. Daí que rasurar o que subjectivamente cada um de nós entende como pecado de uma pessoa na hora do seu falecimento possa equivaler a mutilar a memória dessa pessoa, a bombear o edifício que ela construiu em vida. Mais do que proferir banalidades e, por vezes, derramar hipocrisia, como cal, sobre o ser que se desmaterializa, talvez respeitá-lo seja tratá-lo na morte como ele fez por ser tratado em vida, reconhecer viva a sua marca, inteira. É que um homem pode ser parte do todo, mas há um todo que é parte dele - e o que parte dele, na morte, é o que menos lhe pertence.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

PARA TI

Hoje vou às palavras. Vou ver se estão boas, se estão fresquinhas, se vale a pena trazê-las e quantas. Gosto mais das palavras soltas, o problema é que as não há, ou então estão mortas, cortadas, mutiladas, como as flores que vemos deitadas na rua, à mercê de solas e rodas. As palavras também têm raiz, todas elas, e é uma pena arrancá-la, em qualquer caso, mas ainda assim prefiro fazê-lo a comprar palavras no mercado, arranjadas e metidas em bouquets para impressionar quem passa. O negócio das palavras, aliás, entristece-me, pelo amor que lhes tenho. Gostava de as ver crescer naturalmente, de as regar, de cantar para elas e com elas, de apreciar a forma como se desenvolvem e ganham novas cores, novos cheiros, novas texturas, novos sabores. Gostava de me perder num campo infinito delas, de fechar os olhos e de as ler nesse estado virginal, de as deixar ensinar-me a lê-las, de me ler nelas. As que mais encontro, porém, perderam a leitura, perderam até o leite, não se reproduzem, não se multiplicam, não se renovam, apenas se repetem, como cromos que se trocam por outros num mercado único, que nos quer ver a todos com a mesma caderneta. Mas depois há o amor, o sensor da surpresa, do desconhecido, o raio mágico que desperta com a palavra nova, solta, sem casa, e num instante cobre tudo o resto de sentido. É por ele que eu continuo a ir às palavras. Hoje trouxe estas. Pega, são para ti.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

JÁ TIVE E DEI-AS

Uma ideia é um perigo. É um sugadouro, puxa-nos pelos pés e lá vamos nós ter com ela, mesmo que tentemos levantar-nos e voltar a caminhar para a frente. As ideias são os argumentos do ego, chamam-nos à nossa dimensão corpórea, finita, destacada, parcial. Dizem-nos que o melhor é separarmo-nos dos outros, sermos melhores do que eles, por elas e com elas. Ocupam-nos de as trabalhar, de as melhorar, de as limar, a reboque dessa promessa, que, claro, nunca se cumpre. São sempre precisas mais ideias, ideias atrás das ideias, até à ideia final, da qual não fazemos ideia. O ideal seria deixar as ideias fazerem-nos, deixar os pensamentos terem-nos, deixarmo-nos possuir pelo princípio único de tudo o que existe. Talvez então a vida deixasse de ser, para nós, apenas uma ideia, apenas um perigo.

A DUPLA FACE DAS COISAS

É uma pena o cavalo ter um mastro tão grande e não poder bater punhetas. Por outro lado, ajuda-nos a perceber o problema da democracia.

terça-feira, 15 de junho de 2010

RELAX, DO IT

Oiço falar muito sobre a velocidade crescente da sociedade, sobre a cada vez maior dificuldade das pessoas mais velhas para acompanhar as mudanças, sobre a loucura em que se tem transformado o investimento na tecnologia, sobre a tendência de individualização que tudo isto acarreta, sobre todas as incertezas que o futuro convoca e que, tão depressa como esse futuro se torna presente, se convertem em desesperos, angústias profundas, pânicos, depressões, patologias sem fim. Ou seja, diz-nos o senso comum que estamos a criar inadaptados, que estamos a radicalizar o entendimento da selecção natural, que estamos, como numa corrida de espermatozóides, a disputar entre biliões uma vitória que será apenas de um, dois, três. Talvez seja esse o nosso propósito, talvez isso não diminua o papel que temos, talvez nesse vencedor haja um bocadinho de todos nós, dos que ficamos, talvez a masturbação seja, de facto, um massacre, uma chacina, mas talvez também o propósito do nascimento seja a morte, assim como o propósito da morte o nascimento. A evolução do mundo não diferirá, na essência, no princípio universal, da evolução do homem, isto é, também a humanidade, como qualquer ser, como qualquer corpo, humano ou não, social ou individual, terá um início, um meio e um fim. Simplesmente, a forma de a sociedade olhar para essas evoluções em pouco se equivale: encaramos a tecnologia como algo que deve estar sempre a desenvolver-se, a trabalhar progressivamente os próprios músculos, independentemente de ela, como corpo, ser jovem ou velha, independentemente de as cargas serem adequadas a quem ela serve; e encaramos quem ela serve como algo, ou alguém, que tem uma curva ascendente, um pico de estabilidade e uma curva descendente. Dizemos que a pessoa velha tem de ter calma, que não pode fazer certos esforços, cometer certos excessos, expor-se a certas emoções; já não o fazemos quando, em vez de uma história pessoal, vemos uma história social. Facilmente olhamos para a Idade Média e argumentamos que se vive hoje muito melhor, mas quando temos setenta anos reconhecemos que gostaríamos de ter vinte. Não haverá um ponto de contacto entre as duas situações? Não estará apenas a Idade Média num plano mais jovem de uma sociedade, de uma humanidade, que entrou em processo de acentuada decadência física, que já não apresenta os sinais de frescura de então, que já não tem guerreiros como então, que também já não tem a folia, o instinto, a loucura, o radicalismo, a irrequietude, a irreverência, a impertinência, a irracionalidade, tudo coisas tão próprias da juventude, de então? E não poderíamos, hoje, como tantos velhos saudáveis o fazem, medir as nossas tensões, olhar para o nosso corpo, meditar sobre a condição em que estamos, e concluir que, porventura, o melhor seria aceitar o envelhecimento, aceitar que talvez nem as células mais novas do nosso organismo, nem os elementos mais recentes da nossa espécie, nem as mais vibrantes forças do nosso planeta, venham a beneficiar desta aceleração contínua, desta passada galopante, deste TGV mais rápido que a própria sombra, aliás tão rápido que o mais provável é deixar de haver carris para ele? A velhice, a par do declínio físico, traz uma capacidade mental que, sinceramente, não penso estar a ser globalmente usada, sequer globalmente reconhecida. Temos desprezado, justamente com a obsessão da rapidez, que, ao contrário de trazer melhor qualidade de vida, mais reflexão, mais autoconsciência, faz do tempo um bem de luxo, cada vez menos público, cada vez mais distante, a necessidade de sair deste mundo-comboio e ponderar no propósito da viagem, no destino, que é, naturalmente, o princípio de tudo, o quem eu sou, o para onde vou, a inquietação que tem sempre de estar connosco e que Barack Obama, por exemplo, num dos seus livros, assume tê-lo acompanhado ao longo da escalada política, em forma de estalo para acordar, como quem nunca se esquece de perguntar: Porque é que eu me meti nisto? Quais foram os pilares da minha luta? Não terão, por acaso, já caído? Se sim, o que estou eu a fazer ainda aqui? E até onde isto me levará? Muita gente tem, de resto, expressado confiança no líder americano, meteoricamente transformado por boa parte do mundo num líder supra geográfico, humano, numa espécie de maquinista global. Haverá nisso aspectos positivos, como desde logo a identificação em Obama de uma série de qualidades de que o planeta político carece, de uma série de valores que, precisamente, a febre acumuladora, a voracidade e a ganância foram impunemente pisando, como uvas numa vindima cujo vinho, contrariando o chavão da igreja, parece pouco ser sangue de Deus e muito dos homens, mas é preciso que essa dependência, que essa esperança no alheio, seja acompanhada de uma interiorização efectiva, e prática, desses mesmos valores, nem que ela passe, paradoxalmente, por uma negação dos modelos políticos, económicos e sociais que hoje vigoram, por uma reconstituição dos padrões de vida, começando pelos de cada um, que, para isso, terá necessariamente de se recolher um pouco mais a si, de encontrar tempo, lá está, para meditar, para se autoconhecer, para valorizar os ditames dos clássicos, para ouvir e ver, com calma, se lhe faz sentido o que lhe dizem os mais velhos, para reunir todos os componentes do seu ser numa mesma família, para se desfragmentar, para se sentir uno, inteiro, e para então se olhar ao espelho do mundo, da sociedade, da humanidade, e verificar se se reconhece nessa imagem e o que pode fazer, na sua pequena ou grande esfera de acção, para se reconhecer, para gostar mais do que ela lhe devolve. Se for o caso, deixemos mesmo a tecnologia ir aonde quiser. Não a deixemos é obrigar-nos a ir com ela, que é o que acontece hoje. Saiamos na próxima estação. Se há uma série de tecnólogos a querer digitalizar o homem, a querer passar para o lado de lá do espelho todo o nosso sangue, eles que se valham do voluntariado, que não tenham medo de tomar as suas decisões e não nos impeçam de seguir outras vias. Há quem não queira ser cobaia. Eu, por exemplo, posso não saber para onde vou, mas sei por onde ir. E não tenho pressa.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

POR TUDO E POR NADA

Pergunto-me como estarás, se bem, se mal, se em sacrifício ou em paz, se confusa, se clarividente, se pensarás e em quem, em mim, em ti, em toda a gente ou em ninguém, se estarás a rir ou a chorar, ou simplesmente a meditar, se sentirás tristeza ou alegria, se dentro de ti será noite ou dia, se me quererás ainda ou nunca tanto assim, se nos teus sonhos chamarás por mim, se precisarás de alento, se terás vontade, se respirarás bom vento ou tempestade, se serás presente aí e agora, se desejarás depressa vir embora, se confiarás no espaço imenso, se te agarrarás ao corpo denso, se acolherás a lei da impermanência, se te faltará a paciência, se na doutrina perderás o olhar, se da piscina avistarás o mar, se ficará tranquila a tua mente, se rebentará como um vulcão ardente, se o amor de ser será maior que o desejo de saber amar melhor, se te sentirás em comunhão com tudo, se tomarás silêncio por barulho mudo, se rezarás o terço para travar a ânsia, se entenderás o universo como uma substância, se te irritará o deslumbramento alheio, se decidirás deixar a experiência a meio, se beberás água na eterna nascente, se farás da mágoa uma terna semente, se descobrirás o sentido da vida, se a senti-lo comigo estarás decidida.

PONTO INFINAL

Fico a ver a minha respiração bater as asas, fico a vê-la penetrar no infinito e deleitar-se com o voo sem rumo, sem ordem outra que o prazer de se sentir, de se diluir no espaço, de se apagar. Eu sou a minha respiração tanto mais quanto ela vai para longe, e se perde, e eu morro sem morrer. Aí sou o silêncio, o nada cósmico, a ausência - e, nessa milagrosa consciência, vejo-me fonte de vida, perpétuo nascimento, eternidade.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

AO MEU AMOR

O meu amor foi para longe, descobrir-se, experimentar-se, viajar sozinho. Foi a medo, ou meio a medo, por não saber aonde vai dar esse caminho. Eu disse-lhe para ir em paz, para não ter medo, para ser capaz de confiar no seu próprio segredo. O seguro morreu de velho e, mesmo no escuro, que melhor ao amor faz do que olhar-se ao espelho? É um mergulho suave, um doce grito, como se fosse um voo de ave no infinito. Quando for hora de voltar, talvez o meu amor saiba melhor o que é amar.

terça-feira, 8 de junho de 2010

FREIOS, PORCOS E MAUS

Devia haver um Dia Mundial do Desenfreado (pela piada fonética, até merecia ser feriado), em que todos despejássemos indiscriminadamente o que trazemos dentro, o lixo orgânico e anímico no mesmo saco, no saco do Dia. Eu, cá por mim, vou fazer de conta que é hoje e, daqui para a frente, o que este texto contiver já terá de ser lido à luz dessa ausência de critério. Normalmente, o que me acontece é pegar numa ideia mínima e desenrolá-la, como se faz à massa de rissóis. Só que depois não vou lá com os copos, aliás, se lá fosse com os copos não escreveria nada de jeito, ou às tantas até era assim que arranjava maneira de o fazer, pois quem sabe se as minhas coisas são ou não de jeito é quem as lê, incluindo eu quando assumo esse papel. Nesta última frase, confesso já, quebrei as regras, porque onde escrevi “assumo esse papel” pensei antes escrever “o faço”, mas como tinha escrito, um pouco acima, “arranjava maneira de o fazer”, achei melhor não repetir o verbo. Mas continuemos: não vou lá com os copos, em vez disso junto a massa toda e chapo-a no blogue, menos bruta, concerteza, mais espalmada, mas para vocês fazerem dela o que quiserem. Porque é que me sai das mãos, ou do rolo, menos bruta do que a ele chegou, eis a questão. Em todo o caso, é uma questão que hoje, por ser, para mim, Dia Mundial do Desenfreado, não poderei explorar, ou melhor, poder explorar até posso, mas não poderei esclarecer, porque não garanto coerência ou consistência na abordagem, ou então não seria Dia Mundial do Desenfreado e sim Dia do Freio, a que levanto desde já o dedo do meio, porque esse é todos os dias. Não gosto, no entanto, e aqui o assumo, de reconhecer que corrijo o que escrevo, pois nisso vejo a vontade de vos agradar, de agradar a quem não conheço, de agradar a nada, de degradar. De degradar, sim, se eu não sei o que é bom para vocês e, pelos vistos, também não sei o que é bom para mim e, mesmo assim, corrijo o que escrevo, correndo o risco de corrigir mal, aliás, quase não correndo o risco de corrigir bem, porque de certo modo estou a tapar os olhos com uma peneira, estou a peneirar esse ser cheio de lixo que reclama, hoje, porque decidiu tomar para si um imaginário Dia Mundial do Desenfreado, despejá-lo, ainda por cima em cima de vocês, que não só não têm culpa nenhuma como ainda se predispõem generosamente a ler coisas que eu escrevo para vos agradar sem sequer me dar ao trabalho prévio de vos conhecer e assim saber o que vos agrada. Vou-vos dar um exemplo, e para vo-lo dar terei de me valer de um texto pré-escrito, que contudo não prescrevo, pois surgiu sob a lógica criteriosa da correcção que hoje renego. Era um texto sobre as árvores, fi-lo ontem, e rezava assim: “Há segredos que são para ficar entre mim e as coisas. Verdades ou ilusões, não sei, mas são intimidades sensíveis, diálogos fundos, delicadezas livres que, no seu estado virginal, não resistem à virulência da palavra. São eles quem mo diz, com recém-nascida sensatez, quando o ego me imbui de uma febre de partilha que só pode traduzir, nunca revelar. É como se um feto me pedisse para suster o anúncio da sua vinda ao mundo, para lhe dar mais tempo, para o deixar crescer. Hoje, por exemplo, procurei escrever sobre a minha relação com as árvores, sobre o sereno respeito que me inspiram todas, mesmo as mais desgrenhadas, mesmo as mais secas, mesmo as deitadas abaixo. Há uma dignidade nas árvores que não mora nas coisas do mundo, que não se corta, que não se mata, que perdura como segredo eterno, integridade pura, e que se nos revela apenas nesse esplendor impalpável, chamariz de todos os raios, de todos os ventos, de toda a água, de toda a terra. As árvores são antenas de vida com ossos de morte, faróis de abrangência. O seu silêncio, testemunhando as várias vestes do tempo, é a escola de canto dos pássaros”. Aqui chegado, tomei consciência do que tinha escrito, da cadência pegajosa do que se me prefigurou como ribeiro transparente e que, já a meio da tarefa, deixou de o ser, ou não houvesse eu escrito “Hoje, por exemplo, procurei escrever sobre…”, evidência da morte de uma crónica anunciada, e que devia ter ficado por aí, pelo anúncio, abrenúncio, ou então isto, encaixada, como lixo reciclado, numa prosa toda ela lixeira, toda ela aterro, a prosa em que hoje aterro, a pista inerentemente aérea do Dia Mundial do Desenfreado. De repente, no decurso de tão emproado tributo ao arvoredo, imaginei-me a fazer uma sopa de legumes e a deitar para lá um caldo knorr, que era, bem vistas as coisas, o que eu estava a fazer à minha escrita, pois, quando a provei, e não aprovei, soube-me a Teixeira de Pascoaes, a um Teixeira de Pascoaes em cubo, como as cebolas do Pingo Doce, o que para mim teve, claro, um travo amargo, não porque não goste do escritor, bem pelo contrário, acho-o sublime e considero até a sua obra emblemática, Marânus, o melhor poema que li na vida, mas precisamente por isso, por achar que ele, sobretudo ele, não merece ser enlatado, não merece ser empacotado, não merece ser congelado e vendido assim, aos bocados, como as tais rodas que os copos desenham na massa de rissóis e que eu próprio para mim rejeito, por sentir que a minha escrita, infinitamente mais presa e ferrugenta do que a dele, sabe melhor em bloco, ou em blogue, ou seja lá como for, desde que inteira, desde que corrida, desde que fluida, desde que viva, desde que livre, desde que desenfreada. Dito isto, fico contente por não ter mais gente para atender no guichet da garganta, que é como quem diz mais disparates para escrever, que é como quem diz ainda mais lixo para despejar. Será? Claro que não. O lixo, em mim, não tem fim. Mas este texto, felizmente para todos, tem. Como vêem, há fins que justificam os freios.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

SER SISTEMA OU SER TEMA DO SIS

Para mim, uma pessoa honesta é uma pessoa que procura a honestidade, que está preparada para viver sem objectivos, ou melhor, que está preparada para viver com objectivos objectivamente utópicos, impalpáveis, imateriais. Essa pessoa sabe que os fins preexistem nos meios e, por isso, tende a dedicar-se a cada momento como se ele fosse o primeiro e o último, tende a não marcar encontros, tende a não desejar outra coisa que o não desejar. Essa pessoa liberta, desprende, aprende. Vem isto a propósito da minha experiência de pai, de pai recente, e das dificuldades com que me tenho debatido para afugentar doutrinas, dogmas e conceitos sociais sobre o exercício da paternidade. São moscas, ou piores que moscas, quando atacam a sã convivência entre mim e a minha filha, quando interferem na forma como eu encaro as suas birras, as suas brincadeiras, as suas recusas, os seus mimos, as suas exigências, quando me incitam a representar o papel do mais forte e a obrigá-la a fazer o que quero, quando me levam, portanto, a mentir ao mais fundo de mim, como quem fecha os olhos a si próprio, como quem fecha os olhos à honestidade. Isto acontece, claro, porque mesmo uma pessoa honesta, ou principalmente uma pessoa honesta, tem dúvidas, e, quando as potenciais consequências da dúvida se projectam sobre quem a tem, não é difícil correr o risco, já que afinal a vida de uma pessoa que procura a honestidade é feita de erros e acertos, de passos seguros e passos em falso, mas quando essa dúvida se apresenta como um fio eléctrico que é preciso cortar, de entre dois, para desactivar uma bomba, sendo que a voz íntima de quem escolhe lhe diz para contrariar, nessa escolha, a voz pública de todos os manuais, e os efeitos de um eventual engano recaem sobre outro ser, ainda por cima, no caso a que me reporto, um ser que não deixa de ser a razão de ser do ser que escolhe, é preciso ter coragem para manter a honestidade, não a honestidade de se reconhecer que não se teve coragem, embora também essa, me parece, seja compreensível, ou não condenável, face a todos os condicionalismos que, qual guilhotina, abrem um impecável sorriso sádico por cima da nuca do candidato a réu, mas a honestidade que é honesta para com ela mesma, como o amor de quem ama, acima de tudo, o amor. Eu já muitas vezes tive de reconhecer que me faltou a coragem e, para ser honesto, continuo a ter. Sinto, aliás, que assim será até ao meu último sopro. Mas sei, também, que cada vez mais confio no que não se vê, que cada vez mais percebo a inutilidade de nos agarrarmos às coisas sólidas, que cada vez mais prescindo do tronco de madeira pela corrente do rio, e que, por isso, cada vez menos quero obrigar, moldar, doutrinar. Tenho para mim que o processo educativo é como uma ampulheta. Quando a criança nasce, os pais viram-na (não a ela, isso é a parteira) ao contrário, deixando a partir daí a areia correr, ou seja, a sua responsabilidade esvaziar-se, transferir-se grão a grão para o novo ser, que assim se formará progressivamente mais livre. Não se confunda isto com lavar as mãos do trabalho mais encantador que aos animais foi confiado. O que eu sinto é que, para se saber o que um recém-nascido pede, um pai tem de, sobretudo, estar disponível para ouvir, ver, apalpar, provar, cheirar, que o mesmo é dizer sentir, libertar os sentidos, no fundo aprender com os próprios sentidos como lidar com o seu bebé, olhar para cada um deles como um bebé e senti-lo, sentir-se, sentir os sentidos, pois também eles um dia foram bebés e, estou convencido, na maior parte dos constituintes desta sociedade humana foram bebés logo condicionados, logo dirigidos, logo censurados, logo castigados, logo obrigados, logo atrofiados, logo proibidos. E todos sabemos o que é um sentido proibido. É um caminho que se perde na estrada da vida, de uma vida que não nos pertence por direito, nem sequer a nossa, quanto mais a de outro. É um beco sem entrada, é um nado-morto, é um destino destinado a não ser, é um contra-senso. Estou em crer que, com menos sentidos proibidos e, já agora, por inerência, com menos sentidos obrigatórios, com mais liberdade de trânsito, com menos medo de existir e circular, de brincar, experimentar, fazer e acontecer, a vida em sociedade seria mais plena, mais produtiva, mais surpreendente, mais viva, teria mais possibilidades de se ver ao espelho, de se conhecer a si mesma e, nesse sentido, que é tudo menos proibido, de procurar a honestidade. De ser honesta. Se acham que isto é advogar a anarquia, para mim é confiar na vida, na vida das pessoas e de todos os seres. É confiar nos valores, no amor, na paz, na harmonia, na gratidão. É confiar na verdade, no belo, no bem. E uma coisa é certa: só confia quem tenta. Isto não é, pois, um atentado à democracia, é bem o contrário, é um tentado à democracia, é uma declaração de disponibilidade para testar o sagrado sistema, para tentar ir além dele, para desbloquear o curso do rio, tirar o tronco de madeira, deixar fluir o sangue nas veias do mundo e não para fora das veias do mundo. A escolha é de cada um. Ao menos nisso, sejamos honestos.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

AS PUTAS

Sinto dever para com quem não tem os meus direitos. Passo, todos os dias, por muita gente que vive de si, apenas, sem qualquer enquadramento externo que não o universo, sem outro tecto que o horizonte vertical, reconfortante, ainda assim, na sua aparência finita, sem outro chuveiro que as nuvens, a cuja vontade própria essa gente obedece, ou resiste, consoante as ordens da sobrevivência, sem outra mesa que a caridade ou o lixo, tantas vezes a mesma coisa, o mesmo despejo, que importa se de culpa ou de sobras materiais, sem outro prazer pessoal que o sentirem-se inteiros, já quase irredutíveis, com cada vez menos a perder, sem outro prazer social que a liberdade, quando ela existe, de fazer amigos entre os iguais, de ser iguais aos iguais, aos que também não têm direitos. É difícil admitir que eles, estes seres humanos, não são os restos do mundo, são o mundo inteiro, contas redondas. As migalhas que escapam são o pó da bola, parada, resignada a girar apenas, como um cão que persegue o seu rabo sem nunca apanhar a pulga, mas ainda assim contente por ver as migalhas, o pó, mudar de sítio ao sabor do seu movimento. Simples panaceia. É como diz o provérbio: enquanto o pau [o pó] vai e vem, descansam as costas. E no mundo, como todos sabemos, não há complacência para a tortura das costas, humanas e geográficas. Das costas e dos corpos, da terra inteira, dos continentes, que vão sofrendo e respirando mais e menos consoante as levas de pó, os ventos da ganância e os mares do egoísmo, que se vão habituando a desejar o mal dos outros por já só conceberem o seu bem à escala dele, tão funda vai a cegueira neste olho suspenso do universo, neste olho que, apesar de tudo, ainda gira, ainda espera que o olhemos, não aceita que sejamos dois com ele, ele o planeta e nós o anel, dois olhos da mesma cara, duas órbitas que nem do estrabismo nem da ciência se podem valer, dois poemas impedidos pelo visível, pelo palpável, de pousarem um no outro, reconhecendo cada um ao seu espelho que o amor é tudo aquilo de que a carne os separa. A carne, a razão concreta, a mãe da luta, a filha da puta. É por ela que protagonizamos este espectáculo sangrento da história humana, é por ela que queremos sempre mais guerras, mais vitórias de menos vencedores, menos deveres para quem tem mais direitos. É pelo dinheiro que gastamos o tempo, é pelo fruto que cortamos a árvore, é pela imagem que esvaziamos a substância, é pelo poder que proibimos, é pelo luxo que escondemos o lixo, é para seguir em frente que não olhamos para trás, é pela filha da puta que matamos a mãe. É por nós que não nos queremos. Nós, os filhos da puta. O que é, afinal, uma puta, uma puta homologada, se não alguém que vende o seu corpo para ganhar a vida, que o faz às claras, sem dissimular, sem enganar, que dá o que tem e a muito mais é obrigada por uma sociedade de fundo falso, ingrata, sem raiz, que se serve a todos os níveis desse exemplo de coragem, que se limpa diariamente a essa fralda, que desmente a autenticidade desse seu reflexo e faz dele sombra, sombra perseguida? As putas são, na verdade, oráculos, e não falo do que têm entre as pernas, não, são espelhos da loucura humana, da esquizofrenia da espécie, nessa demonstração inequívoca que proporcionam sobre o valor da carne: se uma pessoa vende o cérebro ou a alma, e poucas são as que hoje não o fazem ou tentam fazer, é um homem de sociedade, um exemplo de responsabilidade social, um cidadão do futuro, um indivíduo credor de todo o respeito; já se vende o corpo, e não tem a sorte de ser exclusiva de um desses portadores de virtude, é uma forma de vida moralmente repulsiva, uma doença contagiosa, uma vergonha para a sociedade, um coração pulsante que não merece estatuto, reconhecimento de dignidade, igualdade de direitos, amor, compaixão, gratidão, nada. Nada que não sejam uns trocos, pénis erectos a entrar-lhes pelos buracos adentro, suores porcos a untar-lhes a pele, ruídos animais a comer-lhes os tímpanos, como se já não bastasse o resto, e quem sabe umas chapadas, uns insultos e todos os maus-tratos que, cobardemente, ficaram por dar aos devidos destinatários. Eu nunca fui às putas, ou melhor, nunca fui com uma puta, mas ponho o meu nome em qualquer lista que defenda a sua profissionalização, que lute por lhes ser dada assistência social, por lhes serem concedidos cuidados médicos, por lhes ser reconhecida toda a coragem e a dignidade que se atribui sem qualquer engulho, e só para dar um exemplo, aos mineiros. As putas são mineiros e minas, escavam o seu lugar ao sol por entre a escuridão do preconceito e da hipocrisia e são, claro, também elas perfuradas, alarvemente perfuradas, quer no seu corpo quer na sua alma. São paredes vivas, histórias ocultas como tesouros escondidos, enterrados, literalmente enterrados, ou emparedados, árvores humanas, anjos da noite, mulheres, mães. E nós, queiramos ou não, somos filhos delas, filhos de todo o tipo de prostituição acumulada que fomos varrendo para debaixo do tapete, desde o princípio dos tempos. Se isto custa a engolir, imaginem o que elas passam.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

A CRISE À MEDIA LUZ

Não é de hoje que, para mim, a decifração da mensagem mediática devia constar dos programas do ensino básico. Todos os dias vejo pessoas a viver no passado e no futuro, atormentadas que estão pelo agoiro jornalístico, agora tão comprazido nesta possibilidade de chupar a crise até ao tutano, como se esta fosse não a madrasta que tanto lamentam, mas a costeleta mais apetitosa que já alguém lhes pôs na mesa. Desculpem os que acharem este discurso uma irresponsabilidade, mas estou plenamente convicto de que a melhor maneira de responder a todas as crises, e também de as evitar, é estar presente em cada momento, é aquilo a que comummente chamamos ter sangue frio. Só assim um piloto de avião pode pensar em aproveitar a percentagem mínima de hipóteses de salvação que se lhe apresentam se os motores do aparelho deixarem de funcionar. Se pensarmos nos media, e em quem neles faz ouvir a sua voz, como pilotos de um avião que se chama Portugal, a atitude generalizada corresponde a abrir a cortina que dá para os lugares dos passageiros e gritar: “Gente, vamos cair!”. Muito se fala, e já fede que chegue, das melhores medidas a adoptar para uma pessoa se proteger da crise. Pois eu avanço já uma: desligar a televisão. Se não for suficiente, como se prevê que não seja, outra há: deixar de ler jornais e de ouvir serviços noticiosos na rádio. Quem o fizer vai ver que rapidamente se encontrará num estado bastante mais calmo e propício a juízos acertados. Antes desta crise, e estou longe de ser o primeiro a assinalá-lo, de muitos outros problemas se inventaram crises. A saúde pública, então, tem sido terreno fértil para extrapolações criminosas a reboque de interesses privados, da BSE ao Antrax, da Gripe das Aves ao H1N1, numa sucessão que será retomada assim que a crise termine, porque, justiça seja feita, se há algo que, no seu afã malévolo, tem mostrado compreensão pelos momentos de drama social são os vírus e as bactérias, muito bem comportadinhos na fila, sem protestar, à espera da sua vez para atacar o mundo quando este não tenha outros problemas mais importantes com que se debater. O mundo, ou melhor, o mundo visível, claro está, já que em certos lugares do mundo, em lugares tão imensos quanto esquecidos, talvez por se levar demasiado à letra o facto de terem paisagens a perder de vista, os vírus e as bactérias e as crises e os crimes se juntam todos, em qualquer altura, sempre, como as próprias vítimas deles, à procura de alimento. A essas vítimas, porém, é que as notícias não dão voz. A essas e às de cá, de Portugal, da Europa, que também não faltam. São os Ricardos Salgados deste planeta, cujas empresas não só apresentam lucros milionários como aumentos milionários desses mesmos lucros, que vêm dizer a quem se unha e desunha para aguentar o seu barco que estamos “no meio de uma tempestade”, que é preciso fazer sacrifícios. Os media, como qualquer produto de consumo, alimentam-se do medo. Aliás, e desculpem lá este parêntesis etimológico, coisa que já vem sendo habitual nos meus textos, as duas palavras terão por certo algo em comum, medo e medium, medo e media, o que, noutro contexto, até me faria armar em reciclador de Mcluhan e afirmar qualquer coisa como “O medo é a mensagem”. Porque é, cada vez mais. Veja-se, por exemplo, a atitude felina de Fátima Campos Ferreira, no programa televisivo do regime, que é mais de bate do que debate, a quebrar todo e qualquer raciocínio dos seus já criteriosamente escolhidos intervenientes que não contribua para adensar o clima de pânico que se vive no País. A eleição dos próprios temas, o próprio nome do programa: Prós e Contras. Então não estamos todos em crise? Então e para combater a crise não é melhor que nos juntemos todos? Então e só há uma coisa e o seu avesso? Então e o equilíbrio, o meio termo, a convergência? Então Aristóteles, se vivesse hoje, não teria assento no Prós e Contras? E porquê, em cenário de crise, fazer prevalecer o alegado, mas muito discutível, interesse empresarial da televisão pública, cortando e colando discursos ao bel-prazer da testa franzida, da pose consternada e da voz grave de Fátima Campos Ferreira, quando todos beneficiaríamos de uma concessão circunstancial, automaticamente justificada, que permitisse aos convidados, dentro daquilo que é o senso comum do bom-senso, desenvolver os seus raciocínios sem pressa ou pressão, com a lucidez e a clareza que só (e voltamos à questão inicial) a paz de espírito proporciona? Há muitas perguntas para devolver aos media, mas infelizmente eles são o paradigma do provérbio “Em casa de ferreiro, espeto de pau”: entram cada vez mais despudoradamente por todas as casas, por todas as crises, por todas as intimidades, e não deixam ninguém entrar nos seus domínios sem uma escalpelização prévia e uma filtragem apertadíssima dos motivos da visita. Com tanta febre documentarista que hoje se testemunha, com tantos Michael Moores (por quem eu não tenho, devo dizer, particular simpatia, já que o entrevejo como um clown do sistema, o pain in the ass tão útil ao establishment, a excepção inevitável para confirmar a regra), já alguém se perguntou porque é que nenhum realizador português se interessa por fazer um documentário sobre a lógica de funcionamento dos media, a vida dos jornalistas, as suas condições de trabalho, as pressões a que são sujeitos, a perspectiva que os patrões têm do jornalismo, a forma como são abordadas as histórias, a facilidade com que se espreme o sangue e se deita fora o corpo? Pois eu digo: primeiro, por ignorância; segundo, por medo; terceiro, por impossibilidade prática de um trabalho independente, verdadeiro, como dizer…, jornalístico. Mas seria da mais elementar importância. Talvez as pessoas pudessem perceber um bocadinho melhor que, nisto das crises, como em muitos dos fenómenos justificativos dos sacrifícios sociais, e desculpando-me desde já pelo travo desagradável que o final deste texto possa deixar no leitor, se aplica com justeza outro provérbio: “Quem se queixa é quem larga a ameixa”.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

DOIS ESTRANHOS, TANTOS DESTINOS

Quando entro num táxi, sinto sempre algum desconforto, um certo receio de que o meu pedido não vá satisfazer o taxista, ou por a distância ser curta ou por a distância ser longa, não sei, ou por eu ter uma nota grande para um custo pequeno, ou então pela hipótese de não lhe apetecer, naquele momento, sair da postura, por estar com sono, por estar cansado, por ter vontade de soltar a bexiga ou, pior, o intestino (digo pior porque se, até hoje, ainda não apanhei nenhum taxista que urinasse no carro, já tive a experiência de vários que, educadamente, comprimiram os gases até ao limite das suas possibilidades e deixaram que eu saísse antes deles, bem como de outros que os largaram placidamente com um desplante esfíngico, deixando-os tomar conta do habitáculo e de mim, de todo eu e, claro, virando do avesso a natureza altruísta do meu desconforto inicial), ou pela eventualidade sumamente azarada de todos esses condicionalismos convergirem naquele módulo andante, que mais valia ficar parado, se assim fosse. Quando me sento, já depois de perguntar se posso e, confesso, nem sempre esperando pela resposta (essa é uma das minhas falhas, tenho talvez de dar um segundo mais, de não fazer daquilo mera circunstância, mera formalidade, devo se calhar aproveitar o momento para tomar o pulso à relação entre o veículo e o condutor, e entre ambos e eu próprio, embora não me esteja a ver a recuar, no caso de a conjuntura não me cheirar, literalmente ou não, bem, por isso pouco interessará o cuidado), fico com os sentidos alerta, atento ao mais pequeno sinal que me permita aferir do estado de espírito do homem, ou da mulher, isto hoje nunca se sabe, que me aceita como passageiro. Depois, indico o destino que pretendo e predisponho-me ao que vem, se o silêncio mais comum, se o “sim senhor” também frequente, se o “t…”, de enfado, que tanto me indigna como me inspira compaixão, dependendo de para onde estou virado, ou se o, mais raro, é certo, mas sempre possível, “f’dasss” , para o qual não há, ou eu não encontro, outra resposta que não engolir em seco e olhar lá para fora. Já no trânsito, opto geralmente por permanecer calado; gosto de que a primeira nota seja dada pelo taxista, uma vez que a última, aconteça o que acontecer, sai sempre do meu bolso. Se ele é comunicativo, se fala das obras na cidade, dos engarrafamentos, do tempo, de mulheres (partindo do princípio de que, se ele for ela, ou seja, se for uma condutora, não me vai falar de homens, primeiro porque não está no código de conduta, depois porque não é costume nas mulheres que conversam com homens desconhecidos e, finalmente, porque o assunto poderia melindrar o passageiro, fazê-lo sentir-se ofendido, tomado por algo que repudiasse ou o perturbasse, nunca se sabe), das asneiras dos políticos, seja do que for, eu dou troco, mais ou menos consoante a minha disponibilidade mental, o meu estado físico (na maior parte dessas vezes débil, ou então não apanharia um táxi, até porque não sou uma pessoa muito acossada pelo tempo, pelo relógio, e gosto imenso de andar a pé, posso calcorrear a cidade inteira e mesmo um ou outro concelho limítrofe, se disso me sentir capaz) e o interesse da conversa, claro. Se, pelo contrário, o motorista é calado, negócio fechado, ninguém abre a boca e tudo corre sobre rodas. Há, no entanto, um outro tipo de taxista, um híbrido, que me deixa sem saber o que fazer: é aquele que, durante a viagem, não nos dirige uma palavra, mas passa a vida a insultar quer os transeuntes quer, sobretudo, os outros condutores, normalmente de janela fechada - ou, no caso de estar aberta, com o carro em andamento. “Ó filha da puta!”, “Vai pó caralho, ó paneleiro!” ou “Não vês o sinal, ó boi?!” são alguns dos inesgotáveis diamantes que atiram boca fora, e se, por regra, a sua raiva é auto-suficiente, não necessitando da nossa anuência, há casos, dentro desta modalidade específica de taxista, em que as bombas têm efeitos colaterais, do tipo “Você já viu isto?!” , o que, no entanto, embora aparentemente nos intime a tomar parte, é também, tal como a pergunta que inicia quer este texto quer a minha entrada nos táxis, apenas uma formalidade, um comprovativo de partilha, um carimbo no silêncio, como que eliminando a possibilidade de aquele homem, apesar de se dirigir para um sítio a pedido de outrém, não ter reparado na nossa presença ali. Assim que o veículo chega ao destino, cuido de me apressar na busca de dinheiro certo, ou o mais certo possível, com uns pozinhos a mais para qualquer eventualidade, e de me despedir cordialmente, tanto nos casos de incomunicabilidade como nos de incontinência comunicativa, já que uns e outros me confrangem, nem sei quais deles mais e menos. No meio, como quase sempre, está a virtude, e quando ela se afirma, que por regra é quando a viagem física acaba antes da dialéctica, o que acontece de longe a longe, fico por mais uns minutos a trocar ideias já não com o motorista, até porque, entretanto, ele teve o cuidado de desligar o motor, mas com o amigo, o parceiro de luta. Essa conversa, ainda que breve reconhecimento de irmandade, é também ela formal, esgota-se na circunstância, como as outras, ou não estivesse o carro longe de nós em poucos segundos, vidas separadas para sempre, quem sabe, num abrir e fechar de porta. Mas tem o condão de me fazer sair bem de um sítio onde entro sempre com desconforto. De mudar o que sinto. E isso define-se numa palavra: viajar. Uma palavra, como um volante, na mão dos taxistas.