segunda-feira, 28 de junho de 2010

FUTEBOL

Desde muito cedo que sou fascinado por futebol. Sempre tive, aliás, em virtude do tempo que o futebol ocupa na minha vida, queixas das pessoas com quem me relacionei mais intimamente. Acho que já estou um bocado melhor, isto é, hoje posso prescindir de ver um jogo importante, como aconteceu há dias com o Portugal-Coreia do Norte, e não cai o Carmo e a Trindade. Em todo o caso, se puder, não falho. Se não tiver nada para fazer e estiver a dar um jogo na televisão, não invento alternativas. Isso, por um lado, e ao contrário do que possa parecer, já quer dizer que não encaro a minha paixão pela bola como uma dependência, ou pelo menos uma dependência corrosiva, alienante e inútil, estúpida. Se o fizesse, contrariá-la-ia. Foi o que me aconteceu com o tabaco, com o álcool e com outras coisas: quando me apercebi de que ia ser difícil dizer-lhes não, disse. Por outro lado, ainda não consegui explicar para mim próprio, e isso intriga-me, o facto de nunca me ter decidido a fazer vida do futebol, ou seja, a estudá-lo tecnicamente, a aprofundar os meus conhecimentos científicos sobre ele, a trabalhar nele. Há qualquer coisa de platónico entre mim e o jogo, só pode ser. Se não, vejamos: durante cinco ou seis anos fui jornalista desportivo, e garanto que nunca me tocou tão pouco o futebol como então. Dir-se-ia que estava no meu mundo: contactava com os jogadores, fazia-lhes entrevistas, via-os treinar, cobria os jogos, acompanhava os clubes em provas europeias, procurava notícias sobre transferências, sondava os empresários, conhecia os dirigentes - andava mesmo perto de tudo o que me encantava. E, não sei se apesar disso ou se por isso, não lhe sentia o sabor. Decidi sair depois de uma experiência esclarecedora: nas habituais entrevistas antes dos jogos, calhou-me o então treinador do Beira-Mar. Fui para Aveiro já com o trabalho todo feito, perguntas e respostas. Quando voltei, quase não precisei de fazer alterações. No dia seguinte, falei com o director do jornal e disse-lhe que me queria ir embora. Durante uns tempos não quis saber de futebol, era como se me tivesse enjoado, e até pus a hipótese de nunca mais voltar a ligar pevide ao fenómeno, do mesmo modo que deixara de sequer poder olhar para um prato de fígados de pescada depois de uma barrigada deles me ter provocado um enjoo monumental. Afinal, estava enganado. Hoje continuo sem sequer poder olhar para um prato de fígados de pescada, mas recuperei inteiramente a paixão pelo futebol. Talvez resida aí a razão de me manter distante, de o acompanhar ao longe, talvez não me queira desiludir outra vez, embora, de um ponto de vista prático, isso até me fizesse bem. Em todo o caso não deixa de ser estranho, porque, se eu estabelecer uma analogia entre a bola e as namoradas, vejo que neste campo, apesar de todas as desilusões que já tive, voltei sempre a jogo. Enfim, resigno-me à possibilidade de serem as tais razões do coração que a razão desconhece. E, definitivamente, é numa perspectiva passional que o futebol me encanta, numa perspectiva estética, sobretudo, mas também sentimental, de uma intensidade emotiva, de um sentido de compromisso que, claro, se traduz em competitividade, e ainda numa perspectiva organizacional, mas não científica, não dissecada e reproduzida, mais a que espontaneamente se revela, de acordo, por exemplo, com as características diferentes de jogadores de diferentes nacionalidades, que as há, não me digam que não, pois, por mais que um treinador treine os seus jogadores sob determinados princípios, o futebol em campo será diferente se esses jogadores forem argentinos ou alemães, e isso enlouquece-me, adoro vê-lo reflectido na relva, a importância da geografia, da cultura, do contexto, as várias bolas dentro da bola, como se esta fosse, afinal, uma bola de cristal, e cada um de nós, cada um dos apaixonados por isto, uma espécie de bruxa, de medium, medium defensivo e ofensivo, centro e ala, esquerdo e direito, uma bússola movida a fascínio, a deslumbramento, apontada para fora, para fora de si e do seu dono, focada no jogo da vida e na vida do jogo, suspensa da batida, do ritmo de cada lance, à espera do inesperado, como num thriller de estalo. Isto, sim, para mim, é futebol. Daí que não me sinta seduzido pelas análises que hoje proliferam nas transmissões televisivas e em tudo o que é cobertura jornalística dos desafios, obcecadas com os movimentos de ruptura, os passes entre linhas, a dobra do trinco ao lateral, o 4-4-2 clássico ou em losango com estas ou aquelas nuances, a segunda bola (eu vejo sempre uma), as transições e os processos ofensivos e defensivos, a circulação em posse, por aí fora. Eu percebo que sejam coisas importantes para os treinadores, no apurar dos detalhes, no afinar dos pormenores, no tal “trabalho específico” que fez história e hoje já não se ouve, mas, sei lá, não estou a ver um crítico de cinema a analisar ponto a ponto a montagem de um filme, as muletas técnicas a que um actor recorre numa cena em particular e que, apesar de durar apenas trinta segundos, são fundamentais para aguentar a tensão da narrativa, a enunciar a lista completa de efeitos especiais ou a falar do tipo de película utilizada e da extrema influência da sua escolha na textura da imagem - e, se o fizer, não me parece que vá ter muitos leitores. Eu, quando vejo um filme, vejo um todo, passam pelos meus olhos tantos pormenores quantos os que a visão global abrange, sendo que uns me atraem mais, outros menos. Acontece-me o mesmo com a música: é perdendo-me no tecido sonoro que lhe encontro as particularidades, é deixando-me levar que me surpreendo com as miudezas e constato a importância capital de algumas delas. E assim funciona também, para mim, o futebol. Em qualquer uma destas artes, que eu não distingo enquanto tal, entendo o espaço como uma realidade basilar, imprescindível. Em qualquer uma delas, quem souber habitar o espaço tem mais possibilidades de sucesso. E, para se saber habitar o espaço, primeiro é necessário percebê-lo, ouvi-lo, senti-lo. O comentador de futebol, de igual modo, tem de perceber o seu espaço de intervenção, e às vezes não é o mais desenvolvido cientificamente o que melhor se sai nos comentários, o que dá mais prazer ouvir, como tantas vezes não é o jogador mais tecnicista, mais propenso à finta, mais agarrado à bola, o que encanta mais ver jogar e, menos ainda, o que melhor produz. Ao falar nisto lembro-me, por exemplo, de Vítor Manuel, um treinador que já passou pela televisão e foi então, na pele de comentador, vítima, ele próprio, de comentários agressivos e críticas arrasadoras, alegadamente porque qualquer um dizia o que ele ia para ali dizer. Ora, aí está a essência do futebol: é um lugar comum. Por isso é que todos gostamos dele. Todos nos revemos nele. Vítor Manuel era um comentador simpático que, além disso, percebia imenso de futebol e não puxava dos galões para o demonstrar, pensava antes nas pessoas que o ouviam, contextualizava as análises nos climas de tensão respectivos, nunca era leviano ou demasiado assertivo nos reparos a técnicos e jogadores, dando um verdadeiro exemplo de respeito pela profissão, pelos colegas de profissão e pelos espectadores. O mesmo vejo agora em Carlos Manuel. Não será por acaso que pertencem a um outro tempo e tipo de futebol, menos obsessivo, mais livre, menos fracturado e, numa determinada perspectiva, que não a das transferências ou a das transmissões, mais global. Tudo tem o seu lugar: a panorâmica e o grande plano. Mas não se perca de vista quem vê: quem vê, ou seja, o receptor último do futebol, aquele que nada tem de transmitir a outrém no momento em que usufrui de um jogo, quer incorporar o som da televisão como um elemento fundamental do seu jogo, não só pelo ambiente das bancadas como pelas achegas do comentador, mas quer incorporá-lo no seu próprio espaço, que não deve deixar de ser seu. Um árbitro sai-se bem quando não se dá por ele. Um comentador também. Mourinho, um amante do integralismo, há-de concordar comigo se eu disser que um bom comentador é aquele que, em vez de cortar o jogo às postas e dissecar bocado a bocado, se consciencializa do seu fluir, se deixa tomar pelo seu curso, se experimenta nele. Ou seja, também joga. Dentro e fora das quatro linhas.

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