terça-feira, 15 de junho de 2010
RELAX, DO IT
Oiço falar muito sobre a velocidade crescente da sociedade, sobre a cada vez maior dificuldade das pessoas mais velhas para acompanhar as mudanças, sobre a loucura em que se tem transformado o investimento na tecnologia, sobre a tendência de individualização que tudo isto acarreta, sobre todas as incertezas que o futuro convoca e que, tão depressa como esse futuro se torna presente, se convertem em desesperos, angústias profundas, pânicos, depressões, patologias sem fim. Ou seja, diz-nos o senso comum que estamos a criar inadaptados, que estamos a radicalizar o entendimento da selecção natural, que estamos, como numa corrida de espermatozóides, a disputar entre biliões uma vitória que será apenas de um, dois, três. Talvez seja esse o nosso propósito, talvez isso não diminua o papel que temos, talvez nesse vencedor haja um bocadinho de todos nós, dos que ficamos, talvez a masturbação seja, de facto, um massacre, uma chacina, mas talvez também o propósito do nascimento seja a morte, assim como o propósito da morte o nascimento. A evolução do mundo não diferirá, na essência, no princípio universal, da evolução do homem, isto é, também a humanidade, como qualquer ser, como qualquer corpo, humano ou não, social ou individual, terá um início, um meio e um fim. Simplesmente, a forma de a sociedade olhar para essas evoluções em pouco se equivale: encaramos a tecnologia como algo que deve estar sempre a desenvolver-se, a trabalhar progressivamente os próprios músculos, independentemente de ela, como corpo, ser jovem ou velha, independentemente de as cargas serem adequadas a quem ela serve; e encaramos quem ela serve como algo, ou alguém, que tem uma curva ascendente, um pico de estabilidade e uma curva descendente. Dizemos que a pessoa velha tem de ter calma, que não pode fazer certos esforços, cometer certos excessos, expor-se a certas emoções; já não o fazemos quando, em vez de uma história pessoal, vemos uma história social. Facilmente olhamos para a Idade Média e argumentamos que se vive hoje muito melhor, mas quando temos setenta anos reconhecemos que gostaríamos de ter vinte. Não haverá um ponto de contacto entre as duas situações? Não estará apenas a Idade Média num plano mais jovem de uma sociedade, de uma humanidade, que entrou em processo de acentuada decadência física, que já não apresenta os sinais de frescura de então, que já não tem guerreiros como então, que também já não tem a folia, o instinto, a loucura, o radicalismo, a irrequietude, a irreverência, a impertinência, a irracionalidade, tudo coisas tão próprias da juventude, de então? E não poderíamos, hoje, como tantos velhos saudáveis o fazem, medir as nossas tensões, olhar para o nosso corpo, meditar sobre a condição em que estamos, e concluir que, porventura, o melhor seria aceitar o envelhecimento, aceitar que talvez nem as células mais novas do nosso organismo, nem os elementos mais recentes da nossa espécie, nem as mais vibrantes forças do nosso planeta, venham a beneficiar desta aceleração contínua, desta passada galopante, deste TGV mais rápido que a própria sombra, aliás tão rápido que o mais provável é deixar de haver carris para ele? A velhice, a par do declínio físico, traz uma capacidade mental que, sinceramente, não penso estar a ser globalmente usada, sequer globalmente reconhecida. Temos desprezado, justamente com a obsessão da rapidez, que, ao contrário de trazer melhor qualidade de vida, mais reflexão, mais autoconsciência, faz do tempo um bem de luxo, cada vez menos público, cada vez mais distante, a necessidade de sair deste mundo-comboio e ponderar no propósito da viagem, no destino, que é, naturalmente, o princípio de tudo, o quem eu sou, o para onde vou, a inquietação que tem sempre de estar connosco e que Barack Obama, por exemplo, num dos seus livros, assume tê-lo acompanhado ao longo da escalada política, em forma de estalo para acordar, como quem nunca se esquece de perguntar: Porque é que eu me meti nisto? Quais foram os pilares da minha luta? Não terão, por acaso, já caído? Se sim, o que estou eu a fazer ainda aqui? E até onde isto me levará? Muita gente tem, de resto, expressado confiança no líder americano, meteoricamente transformado por boa parte do mundo num líder supra geográfico, humano, numa espécie de maquinista global. Haverá nisso aspectos positivos, como desde logo a identificação em Obama de uma série de qualidades de que o planeta político carece, de uma série de valores que, precisamente, a febre acumuladora, a voracidade e a ganância foram impunemente pisando, como uvas numa vindima cujo vinho, contrariando o chavão da igreja, parece pouco ser sangue de Deus e muito dos homens, mas é preciso que essa dependência, que essa esperança no alheio, seja acompanhada de uma interiorização efectiva, e prática, desses mesmos valores, nem que ela passe, paradoxalmente, por uma negação dos modelos políticos, económicos e sociais que hoje vigoram, por uma reconstituição dos padrões de vida, começando pelos de cada um, que, para isso, terá necessariamente de se recolher um pouco mais a si, de encontrar tempo, lá está, para meditar, para se autoconhecer, para valorizar os ditames dos clássicos, para ouvir e ver, com calma, se lhe faz sentido o que lhe dizem os mais velhos, para reunir todos os componentes do seu ser numa mesma família, para se desfragmentar, para se sentir uno, inteiro, e para então se olhar ao espelho do mundo, da sociedade, da humanidade, e verificar se se reconhece nessa imagem e o que pode fazer, na sua pequena ou grande esfera de acção, para se reconhecer, para gostar mais do que ela lhe devolve. Se for o caso, deixemos mesmo a tecnologia ir aonde quiser. Não a deixemos é obrigar-nos a ir com ela, que é o que acontece hoje. Saiamos na próxima estação. Se há uma série de tecnólogos a querer digitalizar o homem, a querer passar para o lado de lá do espelho todo o nosso sangue, eles que se valham do voluntariado, que não tenham medo de tomar as suas decisões e não nos impeçam de seguir outras vias. Há quem não queira ser cobaia. Eu, por exemplo, posso não saber para onde vou, mas sei por onde ir. E não tenho pressa.
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