sexta-feira, 4 de junho de 2010

SER SISTEMA OU SER TEMA DO SIS

Para mim, uma pessoa honesta é uma pessoa que procura a honestidade, que está preparada para viver sem objectivos, ou melhor, que está preparada para viver com objectivos objectivamente utópicos, impalpáveis, imateriais. Essa pessoa sabe que os fins preexistem nos meios e, por isso, tende a dedicar-se a cada momento como se ele fosse o primeiro e o último, tende a não marcar encontros, tende a não desejar outra coisa que o não desejar. Essa pessoa liberta, desprende, aprende. Vem isto a propósito da minha experiência de pai, de pai recente, e das dificuldades com que me tenho debatido para afugentar doutrinas, dogmas e conceitos sociais sobre o exercício da paternidade. São moscas, ou piores que moscas, quando atacam a sã convivência entre mim e a minha filha, quando interferem na forma como eu encaro as suas birras, as suas brincadeiras, as suas recusas, os seus mimos, as suas exigências, quando me incitam a representar o papel do mais forte e a obrigá-la a fazer o que quero, quando me levam, portanto, a mentir ao mais fundo de mim, como quem fecha os olhos a si próprio, como quem fecha os olhos à honestidade. Isto acontece, claro, porque mesmo uma pessoa honesta, ou principalmente uma pessoa honesta, tem dúvidas, e, quando as potenciais consequências da dúvida se projectam sobre quem a tem, não é difícil correr o risco, já que afinal a vida de uma pessoa que procura a honestidade é feita de erros e acertos, de passos seguros e passos em falso, mas quando essa dúvida se apresenta como um fio eléctrico que é preciso cortar, de entre dois, para desactivar uma bomba, sendo que a voz íntima de quem escolhe lhe diz para contrariar, nessa escolha, a voz pública de todos os manuais, e os efeitos de um eventual engano recaem sobre outro ser, ainda por cima, no caso a que me reporto, um ser que não deixa de ser a razão de ser do ser que escolhe, é preciso ter coragem para manter a honestidade, não a honestidade de se reconhecer que não se teve coragem, embora também essa, me parece, seja compreensível, ou não condenável, face a todos os condicionalismos que, qual guilhotina, abrem um impecável sorriso sádico por cima da nuca do candidato a réu, mas a honestidade que é honesta para com ela mesma, como o amor de quem ama, acima de tudo, o amor. Eu já muitas vezes tive de reconhecer que me faltou a coragem e, para ser honesto, continuo a ter. Sinto, aliás, que assim será até ao meu último sopro. Mas sei, também, que cada vez mais confio no que não se vê, que cada vez mais percebo a inutilidade de nos agarrarmos às coisas sólidas, que cada vez mais prescindo do tronco de madeira pela corrente do rio, e que, por isso, cada vez menos quero obrigar, moldar, doutrinar. Tenho para mim que o processo educativo é como uma ampulheta. Quando a criança nasce, os pais viram-na (não a ela, isso é a parteira) ao contrário, deixando a partir daí a areia correr, ou seja, a sua responsabilidade esvaziar-se, transferir-se grão a grão para o novo ser, que assim se formará progressivamente mais livre. Não se confunda isto com lavar as mãos do trabalho mais encantador que aos animais foi confiado. O que eu sinto é que, para se saber o que um recém-nascido pede, um pai tem de, sobretudo, estar disponível para ouvir, ver, apalpar, provar, cheirar, que o mesmo é dizer sentir, libertar os sentidos, no fundo aprender com os próprios sentidos como lidar com o seu bebé, olhar para cada um deles como um bebé e senti-lo, sentir-se, sentir os sentidos, pois também eles um dia foram bebés e, estou convencido, na maior parte dos constituintes desta sociedade humana foram bebés logo condicionados, logo dirigidos, logo censurados, logo castigados, logo obrigados, logo atrofiados, logo proibidos. E todos sabemos o que é um sentido proibido. É um caminho que se perde na estrada da vida, de uma vida que não nos pertence por direito, nem sequer a nossa, quanto mais a de outro. É um beco sem entrada, é um nado-morto, é um destino destinado a não ser, é um contra-senso. Estou em crer que, com menos sentidos proibidos e, já agora, por inerência, com menos sentidos obrigatórios, com mais liberdade de trânsito, com menos medo de existir e circular, de brincar, experimentar, fazer e acontecer, a vida em sociedade seria mais plena, mais produtiva, mais surpreendente, mais viva, teria mais possibilidades de se ver ao espelho, de se conhecer a si mesma e, nesse sentido, que é tudo menos proibido, de procurar a honestidade. De ser honesta. Se acham que isto é advogar a anarquia, para mim é confiar na vida, na vida das pessoas e de todos os seres. É confiar nos valores, no amor, na paz, na harmonia, na gratidão. É confiar na verdade, no belo, no bem. E uma coisa é certa: só confia quem tenta. Isto não é, pois, um atentado à democracia, é bem o contrário, é um tentado à democracia, é uma declaração de disponibilidade para testar o sagrado sistema, para tentar ir além dele, para desbloquear o curso do rio, tirar o tronco de madeira, deixar fluir o sangue nas veias do mundo e não para fora das veias do mundo. A escolha é de cada um. Ao menos nisso, sejamos honestos.

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