sexta-feira, 28 de maio de 2010

A CRISE À MEDIA LUZ

Não é de hoje que, para mim, a decifração da mensagem mediática devia constar dos programas do ensino básico. Todos os dias vejo pessoas a viver no passado e no futuro, atormentadas que estão pelo agoiro jornalístico, agora tão comprazido nesta possibilidade de chupar a crise até ao tutano, como se esta fosse não a madrasta que tanto lamentam, mas a costeleta mais apetitosa que já alguém lhes pôs na mesa. Desculpem os que acharem este discurso uma irresponsabilidade, mas estou plenamente convicto de que a melhor maneira de responder a todas as crises, e também de as evitar, é estar presente em cada momento, é aquilo a que comummente chamamos ter sangue frio. Só assim um piloto de avião pode pensar em aproveitar a percentagem mínima de hipóteses de salvação que se lhe apresentam se os motores do aparelho deixarem de funcionar. Se pensarmos nos media, e em quem neles faz ouvir a sua voz, como pilotos de um avião que se chama Portugal, a atitude generalizada corresponde a abrir a cortina que dá para os lugares dos passageiros e gritar: “Gente, vamos cair!”. Muito se fala, e já fede que chegue, das melhores medidas a adoptar para uma pessoa se proteger da crise. Pois eu avanço já uma: desligar a televisão. Se não for suficiente, como se prevê que não seja, outra há: deixar de ler jornais e de ouvir serviços noticiosos na rádio. Quem o fizer vai ver que rapidamente se encontrará num estado bastante mais calmo e propício a juízos acertados. Antes desta crise, e estou longe de ser o primeiro a assinalá-lo, de muitos outros problemas se inventaram crises. A saúde pública, então, tem sido terreno fértil para extrapolações criminosas a reboque de interesses privados, da BSE ao Antrax, da Gripe das Aves ao H1N1, numa sucessão que será retomada assim que a crise termine, porque, justiça seja feita, se há algo que, no seu afã malévolo, tem mostrado compreensão pelos momentos de drama social são os vírus e as bactérias, muito bem comportadinhos na fila, sem protestar, à espera da sua vez para atacar o mundo quando este não tenha outros problemas mais importantes com que se debater. O mundo, ou melhor, o mundo visível, claro está, já que em certos lugares do mundo, em lugares tão imensos quanto esquecidos, talvez por se levar demasiado à letra o facto de terem paisagens a perder de vista, os vírus e as bactérias e as crises e os crimes se juntam todos, em qualquer altura, sempre, como as próprias vítimas deles, à procura de alimento. A essas vítimas, porém, é que as notícias não dão voz. A essas e às de cá, de Portugal, da Europa, que também não faltam. São os Ricardos Salgados deste planeta, cujas empresas não só apresentam lucros milionários como aumentos milionários desses mesmos lucros, que vêm dizer a quem se unha e desunha para aguentar o seu barco que estamos “no meio de uma tempestade”, que é preciso fazer sacrifícios. Os media, como qualquer produto de consumo, alimentam-se do medo. Aliás, e desculpem lá este parêntesis etimológico, coisa que já vem sendo habitual nos meus textos, as duas palavras terão por certo algo em comum, medo e medium, medo e media, o que, noutro contexto, até me faria armar em reciclador de Mcluhan e afirmar qualquer coisa como “O medo é a mensagem”. Porque é, cada vez mais. Veja-se, por exemplo, a atitude felina de Fátima Campos Ferreira, no programa televisivo do regime, que é mais de bate do que debate, a quebrar todo e qualquer raciocínio dos seus já criteriosamente escolhidos intervenientes que não contribua para adensar o clima de pânico que se vive no País. A eleição dos próprios temas, o próprio nome do programa: Prós e Contras. Então não estamos todos em crise? Então e para combater a crise não é melhor que nos juntemos todos? Então e só há uma coisa e o seu avesso? Então e o equilíbrio, o meio termo, a convergência? Então Aristóteles, se vivesse hoje, não teria assento no Prós e Contras? E porquê, em cenário de crise, fazer prevalecer o alegado, mas muito discutível, interesse empresarial da televisão pública, cortando e colando discursos ao bel-prazer da testa franzida, da pose consternada e da voz grave de Fátima Campos Ferreira, quando todos beneficiaríamos de uma concessão circunstancial, automaticamente justificada, que permitisse aos convidados, dentro daquilo que é o senso comum do bom-senso, desenvolver os seus raciocínios sem pressa ou pressão, com a lucidez e a clareza que só (e voltamos à questão inicial) a paz de espírito proporciona? Há muitas perguntas para devolver aos media, mas infelizmente eles são o paradigma do provérbio “Em casa de ferreiro, espeto de pau”: entram cada vez mais despudoradamente por todas as casas, por todas as crises, por todas as intimidades, e não deixam ninguém entrar nos seus domínios sem uma escalpelização prévia e uma filtragem apertadíssima dos motivos da visita. Com tanta febre documentarista que hoje se testemunha, com tantos Michael Moores (por quem eu não tenho, devo dizer, particular simpatia, já que o entrevejo como um clown do sistema, o pain in the ass tão útil ao establishment, a excepção inevitável para confirmar a regra), já alguém se perguntou porque é que nenhum realizador português se interessa por fazer um documentário sobre a lógica de funcionamento dos media, a vida dos jornalistas, as suas condições de trabalho, as pressões a que são sujeitos, a perspectiva que os patrões têm do jornalismo, a forma como são abordadas as histórias, a facilidade com que se espreme o sangue e se deita fora o corpo? Pois eu digo: primeiro, por ignorância; segundo, por medo; terceiro, por impossibilidade prática de um trabalho independente, verdadeiro, como dizer…, jornalístico. Mas seria da mais elementar importância. Talvez as pessoas pudessem perceber um bocadinho melhor que, nisto das crises, como em muitos dos fenómenos justificativos dos sacrifícios sociais, e desculpando-me desde já pelo travo desagradável que o final deste texto possa deixar no leitor, se aplica com justeza outro provérbio: “Quem se queixa é quem larga a ameixa”.

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