terça-feira, 4 de maio de 2010
A VISITA
Ontem visitou-me uma personagem minha. Não digo qual foi. Agradeceu-me o facto de a ter inventado. Disse que a vida lhe corre. Eu, claro, fiquei contente, porque gosto sempre de que os meus filhos se sintam bem, embora muita gente pense que os escritores inventam personagens para neles aliviarem a sua carga de infelicidade. Mas ele não vinha a isso: o motivo da inesperada visita prendia-se com os problemas que a mulher estava a atravessar. Problemas de anonimato. Eu respondi-lhe que nada podia fazer para o ajudar, já que fora ele, e não eu, o inventor da sua mulher. Percebi então, na reacção dele, a real natureza do agradecimento: era graxa. Vi nos seus olhos como o fogo se ateava quando me respondeu que se eu era responsável por ele era também responsável pelas suas responsabilidades. 'Mas não vês que há uma parede entre mim e a tua mulher?', invoquei eu, dando-me à simpatia de lhe explicar que, em qualquer estafeta, quem recebe o testemunho tem de fazer a volta sozinho. Era, além disso, uma forma de lhe mostrar que o problema do anonimato só podia ser resolvido pela mulher, não por ele. Propus-lhe que lhe fizesse, a ela, a mesma pergunta: 'Mas não vês que há uma parede entre mim e o teu anonimato?'. Ele retorquiu que eu não conhecia a sua mulher. E eu, claro, tentei rematar ali a questão: 'Ora vês como eu não posso fazer nada?'. Não chegou. Disse-me para a reputar do que quisesse: 'Podes chamar-lhe puta, vaca, galdéria... Ela não se importa. Tens é de a inventar'. A minha paciência estava a esfumar-se, mesmo tratando-se ele, e não ela, essa puta, vaca, galdéria ou lá o que ela queria que eu lhe chamasse, de uma personagem minha, e eu vejo sempre as minhas personagens como meus filhos, o que não é igual a ver as personagens deles como meus netos. 'Mais uma vez acabas de dar a resposta. Ouve-te: dizes que eu tenho de a inventar. Pois se ela já foi inventada, e por ti!'. Pela febre com que os seus olhos saltaram dos buracos, percebi que também a paciência dele já voara para longe, e pensei, embora o clima não fosse propício a divagações poéticas, se não teriam ido ambas ver o pôr-do-sol, à espera de que quando nós resolvêssemos a nossa inconveniente diatribe ainda pudéssemos juntar-nos a elas e contemplar o momento mágico em que a luz se apaga no horizonte e todas as fronteiras se anulam. 'É isso!', gritei, já a minha personagem se atirava ao meu pescoço. 'Anda comigo lá fora, vamos ter com as nossas paciências à beira-mar!'. Ele parou, perplexo como um boi a contemplar o vazio. Sem resposta, deixou-se arrastar. O seu silêncio era de 'pause', de banho-maria, de volto já. Mas não deixava de ser um voto de confiança, um derradeiro sopro de fé no criador. Chegados à praia, vimos as nossas paciências na água, nadando em frente, como setas apontadas ao leito do último raio, ao ralo da última ideia. Fomo-las seguindo com os olhos, eu e ele, lado a lado e nos antípodas um do outro, como tudo à nossa volta, como tudo à volta de tudo, até ao fim. E foi assim.
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