segunda-feira, 10 de maio de 2010

E PUR SI MUOVE

Hoje entendo a expressão "parar é morrer" num sentido distinto daquele em que a entendia quando comecei a escrever esta frase. Podia agora parar por aqui que a dita (ou escrita) frase não morreria. Provavelmente viveria até mais e melhor do que com o seguimento que lhe vou dar, mas apetece-me discorrer sobre o assunto. É como quando uma pessoa come mais do que o suficiente porque lhe está a dar prazer. Ora, dizia (ou escrevia) eu que entendo a expressão "parar é morrer" de modo diferente daquele em que a entendia quando comecei a escrever a primeira frase deste texto - e agora acrescento que a última também. A vida é toda ela dinâmica, estejamos nós parados (que nunca estamos) ou em plena actividade. Mas, como somos materialistas, interpretamos as coisas sentidas, ditas, escritas e feitas no seu significado mais material. "Parar é morrer" torna-se, então, igual a dizer que quem não trabalha é um inútil, que quem contempla "mata" tempo. Por isso, há que andar, há que sair do sítio, fugir para a frente. Há que fazer coisas paradas, senão param-nos elas a nós, que isto é matar ou morrer. Cristalizamos imagens, sons, formas e tudo o mais. Chegamos até à suprema ironia (é quase sadismo) de fazer coisas paradas que nos ajudam a andar. Sapatos, por exemplo. Tudo o que construímos é parado: mesmo os meios de transporte, do triciclo ao foguetão. Às vezes concebemos compostos que, dentro do nosso filtro perceptivo, se mostram fluídos, em movimento, mas as substâncias que lhes conferem essa propriedade já existiam, já fluíam, já se moviam. Pensemos agora nalguns dos trabalhos ditos mais criativos. Pensemos nas artes plásticas, na música, na literatura. Um pintor é-o, reconhecidamente, quando expõe um quadro. Uma banda consagra-se quando edita um disco. Um escritor quando publica um livro. Ou seja, estamos vivos quando matamos coisas. Porque é com coisas mortas que as pessoas vivas vivem e, nesse sentido, ao matarmo-las (às coisas, não às pessoas) estamos a fazer com que outras pessoas possam viver. Em tudo isto, claro, o dinheiro exerce um papel fundamental. Se eu pago para ir a uma exposição, legitimo essa condição de ser vivo, mesmo contemplando. Se eu compro um livro ou um disco a mesma coisa, até subo na consideração dos meus circundantes porque posso assim falar de matérias "não dadas", em duplo sentido (a pirataria, nesse aspecto, é claramente um mal que veio por bem). Já se eu paro sobre um rochedo a olhar o rio, sou um mandrião. Ninguém me convence, aliás, de que boa parte da popularidade que a pesca de cana ainda tem não se explica pelo facto de proporcionar, com a busca de alimento, uma excelente desculpa para as pessoas pararem sem que as acusem de morrer. Estão a fazer alguma coisa (ou a matar - no caso, peixe). Por isso, e sem querer fazer deste texto um manifesto, uma apologia ou uma posição de princípio, dando-lhe uma importância que ele não tem, até porque o meu entendimento sobre ele já não é exactamente o mesmo de quando o escrevi e não posso, assim, subscrevê-lo na íntegra, sugiro, para o terminar e assumi-lo como produzido, completo, pronto a servir (e desse modo furtar-me, eu próprio, às acusações de calaceiro, morto-vivo ou coisa que o valha), a admissão de uma expressão na frequência de vibração oposta à inicialmente citada ("parar é morrer"), e que seria "mover-se é matar". Dito (ou escrito) isto, páro. E, curiosamente, para muitos dos meus potenciais leitores, é agora que começo a viver.

Sem comentários: