quinta-feira, 27 de maio de 2010
DOIS ESTRANHOS, TANTOS DESTINOS
Quando entro num táxi, sinto sempre algum desconforto, um certo receio de que o meu pedido não vá satisfazer o taxista, ou por a distância ser curta ou por a distância ser longa, não sei, ou por eu ter uma nota grande para um custo pequeno, ou então pela hipótese de não lhe apetecer, naquele momento, sair da postura, por estar com sono, por estar cansado, por ter vontade de soltar a bexiga ou, pior, o intestino (digo pior porque se, até hoje, ainda não apanhei nenhum taxista que urinasse no carro, já tive a experiência de vários que, educadamente, comprimiram os gases até ao limite das suas possibilidades e deixaram que eu saísse antes deles, bem como de outros que os largaram placidamente com um desplante esfíngico, deixando-os tomar conta do habitáculo e de mim, de todo eu e, claro, virando do avesso a natureza altruísta do meu desconforto inicial), ou pela eventualidade sumamente azarada de todos esses condicionalismos convergirem naquele módulo andante, que mais valia ficar parado, se assim fosse. Quando me sento, já depois de perguntar se posso e, confesso, nem sempre esperando pela resposta (essa é uma das minhas falhas, tenho talvez de dar um segundo mais, de não fazer daquilo mera circunstância, mera formalidade, devo se calhar aproveitar o momento para tomar o pulso à relação entre o veículo e o condutor, e entre ambos e eu próprio, embora não me esteja a ver a recuar, no caso de a conjuntura não me cheirar, literalmente ou não, bem, por isso pouco interessará o cuidado), fico com os sentidos alerta, atento ao mais pequeno sinal que me permita aferir do estado de espírito do homem, ou da mulher, isto hoje nunca se sabe, que me aceita como passageiro. Depois, indico o destino que pretendo e predisponho-me ao que vem, se o silêncio mais comum, se o “sim senhor” também frequente, se o “t…”, de enfado, que tanto me indigna como me inspira compaixão, dependendo de para onde estou virado, ou se o, mais raro, é certo, mas sempre possível, “f’dasss” , para o qual não há, ou eu não encontro, outra resposta que não engolir em seco e olhar lá para fora. Já no trânsito, opto geralmente por permanecer calado; gosto de que a primeira nota seja dada pelo taxista, uma vez que a última, aconteça o que acontecer, sai sempre do meu bolso. Se ele é comunicativo, se fala das obras na cidade, dos engarrafamentos, do tempo, de mulheres (partindo do princípio de que, se ele for ela, ou seja, se for uma condutora, não me vai falar de homens, primeiro porque não está no código de conduta, depois porque não é costume nas mulheres que conversam com homens desconhecidos e, finalmente, porque o assunto poderia melindrar o passageiro, fazê-lo sentir-se ofendido, tomado por algo que repudiasse ou o perturbasse, nunca se sabe), das asneiras dos políticos, seja do que for, eu dou troco, mais ou menos consoante a minha disponibilidade mental, o meu estado físico (na maior parte dessas vezes débil, ou então não apanharia um táxi, até porque não sou uma pessoa muito acossada pelo tempo, pelo relógio, e gosto imenso de andar a pé, posso calcorrear a cidade inteira e mesmo um ou outro concelho limítrofe, se disso me sentir capaz) e o interesse da conversa, claro. Se, pelo contrário, o motorista é calado, negócio fechado, ninguém abre a boca e tudo corre sobre rodas. Há, no entanto, um outro tipo de taxista, um híbrido, que me deixa sem saber o que fazer: é aquele que, durante a viagem, não nos dirige uma palavra, mas passa a vida a insultar quer os transeuntes quer, sobretudo, os outros condutores, normalmente de janela fechada - ou, no caso de estar aberta, com o carro em andamento. “Ó filha da puta!”, “Vai pó caralho, ó paneleiro!” ou “Não vês o sinal, ó boi?!” são alguns dos inesgotáveis diamantes que atiram boca fora, e se, por regra, a sua raiva é auto-suficiente, não necessitando da nossa anuência, há casos, dentro desta modalidade específica de taxista, em que as bombas têm efeitos colaterais, do tipo “Você já viu isto?!” , o que, no entanto, embora aparentemente nos intime a tomar parte, é também, tal como a pergunta que inicia quer este texto quer a minha entrada nos táxis, apenas uma formalidade, um comprovativo de partilha, um carimbo no silêncio, como que eliminando a possibilidade de aquele homem, apesar de se dirigir para um sítio a pedido de outrém, não ter reparado na nossa presença ali. Assim que o veículo chega ao destino, cuido de me apressar na busca de dinheiro certo, ou o mais certo possível, com uns pozinhos a mais para qualquer eventualidade, e de me despedir cordialmente, tanto nos casos de incomunicabilidade como nos de incontinência comunicativa, já que uns e outros me confrangem, nem sei quais deles mais e menos. No meio, como quase sempre, está a virtude, e quando ela se afirma, que por regra é quando a viagem física acaba antes da dialéctica, o que acontece de longe a longe, fico por mais uns minutos a trocar ideias já não com o motorista, até porque, entretanto, ele teve o cuidado de desligar o motor, mas com o amigo, o parceiro de luta. Essa conversa, ainda que breve reconhecimento de irmandade, é também ela formal, esgota-se na circunstância, como as outras, ou não estivesse o carro longe de nós em poucos segundos, vidas separadas para sempre, quem sabe, num abrir e fechar de porta. Mas tem o condão de me fazer sair bem de um sítio onde entro sempre com desconforto. De mudar o que sinto. E isso define-se numa palavra: viajar. Uma palavra, como um volante, na mão dos taxistas.
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